— És tu então o rei dos judeus?... Os da tua nação trazem-te aqui!... Que fizeste tu?... Onde é o teu reino?
O intérprete, enfatuado, perfilado junto ao sólio de mármore, repetiu muito alto estas cousas na antiga língua hebraica dos livros santos; e, como o Rabi permanecia silencioso, gritou-as na fala caldaica que se usa em Galiléia.
Então Jesus deu um passo. Eu ouvi a sua voz. Era clara, segura, dominadora e serena:
— O meu reino não é daqui! Se por vontade de meu pai eu fosse Rei de Israel, não estaria diante de ti com esta corda nas mãos... Mas o meu reino não é deste mundo!
Um grito estrugiu, desesperado:
— Tirai-o então deste mundo!
E logo, como lenha preparada que uma faísca inflama, o furor dos fariseus e dos serventes do templo irrompeu, crepitando, em clamores impacientes:
— Crucificai-o! Crucificai-o!
Pomposamente o intérprete redizia em grego ao Pretor os brados tumultuosos, lançados na língua siríaca que fala o povo em Judéia... Pôncio bateu o borzeguim sobre o mármore. Os dous lictores ergueram ao ar as varas rematadas numa figura de águia; o escriba gritou o nome de Caio Tibério; e logo os braços frementes se abaixaram, e foi como um terror diante da majestade do povo romano.
De novo Pôncio falou, lento e vago:
— Dizes então que és rei... E que vens tu fazer aqui?
Jesus deu outro passo para o Pretor. A sua sandália pousou fortemente sobre as lajes, como se tomasse posse suprema da terra. E o que saiu dos seus lábios trêmulos pareceu-me fulgurar, vivo no ar, como o resplendor que dos seus olhos negros saiu.
— Eu vim a este mundo testemunhar a verdade! Quem desejar a verdade, quem quiser pertencer à verdade tem de escutar a minha voz!
Pilatos considerou-o um momento, pensativo; depois, encolhendo os ombros:
— Mas, homem, o que é a verdade?
Jesus de Nazaré emudeceu, e no Pretório espalhou-se um silêncio, como se todos os corações tivessem parado, cheios subitamente de incerteza...
Então, apanhando devagar a sua vasta toga, Pilatos desceu os quatro degraus de bronze; e precedido dos lictores, seguido do assessor, penetrou no palácio, por entre o rumor de armas dos legionários que o saudavam, batendo o ferro das lanças sobre o bronze dos escudos.
Imediatamente elevou-se por todo o pátio um áspero e ardente sussurro, como de abelhas irritadas. Sareias perorava, brandindo o báculo, entre os fariseus que apertavam as mãos num terror. Outros, afastados, cochichavam sombriamente. Um grande velho, com um manto negro que esvoaçava, corria numa ânsia o Pretório, por entre os que dormiam ao sol, por entre os vendedores de pães ázimos, gritando: «Israel está perdido!» E eu vi levitas fanáticos arrancarem as borlas das túnicas, como numa calamidade pública.
Gade surgiu diante de nós, erguendo os braços triunfantes:
— O Pretor é justo e liberta o Rabi!...
E, com a face cheia de brilho, revelava-nos a doçura da sua esperança! O Rabi, apenas solto, deixaria Jerusalém — onde as pedras eram menos duras que os corações. Os seus amigos armados esperavam-no em Betânia; e partiriam ao romper da lua para o oásis de Engada! Lá estavam aqueles que o amavam. Não era Jesus o irmão dos essênios? Como eles o Rabi pregava o desprezo dos bens terrestres, a ternura pelos que são pobres, a incomparável beleza do reino de Deus...
Eu, crédulo, regozijava-me — quando um tumulto invadiu a galeria, que um escravo viera regar. Era o bando escuro dos fariseus, em marcha para o banco de pedra, onde Rabi Robã conversava com Manassés, enrolando docemente nos dedos os cabelos da criança, mais louros que os milhos. Topsius e eu corremos para a turba intolerante. Já Sareias, no meio, curvado, mas com a firmeza de quem intima, dizia:
— Rabi Robã, é necessário que vás falar ao Pretor e salvar a nossa lei!
E logo, de todos os lados, foi um suplicar ansioso:
— Rabi, fala ao Pretor! Rabi, salva Israel!
Lentamente o velho erguia-se, majestoso como um grande Moisés. E diante dele um levita, muito pálido, vergava os joelhos, murmurava a tremer:
— Rabi, tu és justo, sábio, perfeito e forte diante do Senhor!
Rabi Robã levantou as duas mãos abertas para o céu; e todos se curvaram como se o espírito de Jeová, obedecendo à muda invocação, tivesse descido para encher aquele coração justo. Depois, com a mão da criança na sua, pôs-se a caminhar em silêncio atrás a turba fazia um rumor de sandálias lassas, sobre as lajes de mármore.
Paramos, amontoados, diante da porta de cedro, onde o pretoriano cruzara a lança, depois de bater as argolas de prata. Os pesados gonzos rangeram; um tribuno do palácio acudiu, tendo na mão um longo galho de vide. Dentro era uma fria sala, mal alumiada, severa, com os muros forrados de estuques escuros. Ao centro erguia-se palidamente uma estátua de Augusto, com o pedestal juncado de coroas de louro e de ramos votivos; dous grandes tocheiros de bronze dourado reluziam aos cantos, na sombra.
Nenhum dos judeus entrou — porque pisar em dia pascal um solo pagão, era cousa impura diante do Senhor. Sareias anunciou altivamente ao tribuno que «alguns da nação de Israel, à porta do palácio de seus pais, estavam esperando o Pretor». Depois pesou um silêncio, cheio de ansiedade...
Mas dous lictores avançaram; e logo atrás, caminhando a passos largos, com a vasta toga apanhada contra o peito, Pilatos apareceu.
Todos os turbantes se curvaram, saudando o Procurador da Judéia. Ele parara junto à estátua de Augusto. E, como repetindo o gesto nobre da figura de mármore, estendeu a mão que segurava um pergaminho enrolado, e disse:
— Que a paz seja convosco e com as vossas palavras... Falai!
Sareias, vogal do Sanedrim, adiantando-se, declarou que os seus corações vinham em verdade cheios de paz... Mas, tendo o Pretor deixado o Pretório, sem confirmar nem anular a sentença do Sanedrim, que condenava Jesus-ben-José — eles se achavam como o homem que vê a uva na vinha, suspensa, sem secar e sem amadurecer!
Pôncio pareceu-me penetrado de eqüidade e demência.
— Eu interroguei o vosso preso — disse ele; e não lhe achei culpa que deva punir o Procurador da Judéia... Antipas Herodes, que é prudente e forte, que pratica a vossa lei e ora no vosso templo, interrogou-o também e nenhuma culpa nele encontrou... Esse homem diz apenas cousas incoerentes, como os que falam em sonhos... Mas as suas mãos estão puras de sangue; nem ouvi que ele escalasse o muro do seu vizinho... César não é um amo inexorável... Esse homem é apenas um visionário.
Então, com um sombrio murmúrio, todos recuaram, deixando Rabi Robã só no limiar da sala romana. Um brilho de jóia tremia na ponta da sua tiara; as suas cãs caindo sobre os vastos ombros, coroavam-no de majestade como a neve faz aos montes; as franjas azuis do seu manto solto rojavam nas lajes, em redor. Devagar, sereno, como se explicasse a lei aos seus discípulos, ergueu a mão e disse:
— Oficial de César, Pôncio, muito justo e muito sábio! O homem que tu chamas visionário, há anos que ofende todas as nossas leis e blasfema o nosso Deus. Mas quando o prendemos nós, quando te trouxemos nós? Somente quando o vimos entrar em triunfo pela Porta de Ouro, aclamado como Rei da Judéia. Porque a Judéia não tem outro rei senão Tibério; e apenas um sedicioso se proclama em revolta contra César, apressamo-nos a castigá-lo. Assim fazemos nós, que não temos mandado de César, nem cobramos do seu erário; e tu, oficial de César, não queres que seja castigado o rebelde a teu amo?
A face larga de Pôncio, que uma sonolência amolecia, relampeou, raiada vivamente de sangue. Aquela tortuosidade de judeus que, execrando Roma, apregoavam agora um zelo ruidoso por César para poderem, em nome da sua autoridade, saciar um ódio sacerdotal — revoltou a retidão do romano; e a audaciosa admoestação foi intolerável ao seu orgulho. Desabridamente exclamou, com um gesto que os sacudia: