— Cessai! Os procuradores de César não vêm aprender, a uma colônia bárbara da Ásia, os seus deveres para com César!
Manassés que ao meu lado, já impaciente, puxava a barba, afastou-se com indignação. Eu tremi. Mas o soberbo Rabi prosseguiu, mais indiferente à ira de Pôncio do que ao balar de um anho que arrastasse às aras:
— Que faria o procurador de César, em Alexandria, se um visionário descesse de Bubastes, proclamando-se Rei do Egito? O que tu não queres fazer nesta terra bárbara da Ásia! Teu amo dá-te a guardar uma vinha, e tu deixas que entrem nela e que a vindimem? Para que estás então na Judéia? Para que está a sexta legião na Torre Antônia? Mas o nosso espírito é claro, e a nossa voz é clara e alta bastante, Pôncio, para que César a ouça!...
Pôncio deu um passo lento para a porta. E com os olhos faiscantes, cravados naqueles judeus que, astutamente, o iam enlaçando na trama sutil dos seus rancores religiosos:
— Eu não receio as vossas intrigas! — murmurou surdamente. Elio Lama é meu amigo!... E César conhece-me bem!
— Tu vês o que não está nos nossos corações! — disse Rabi Robã, calmo como se conversasse à sombra do seu vergel. — Mas nós vemos bem o que está no teu, Pôncio! Que te importa a ti a vida ou a morte de um vagabundo de Galiléia?... Se tu não queres, como dizes, vingar deuses cuja divindade não respeitas, como podes querer salvar um profeta cujas profecias não crês?... A tua malícia é outra, romano! Tu queres a destruição de Judá!
Um estremecimento de cólera, de paixão devota, passou entre os fariseus; alguns palpavam o seio da túnica, como procurando uma arma. E Rabi Robã continuava denunciando o Pretor, com serenidade e lentidão:
— Tu queres deixar impune o homem que pregou a insurreição, declarando-se rei numa província de César, para tentar, pela impunidade, outras ambições mais fortes e levar, outro Judas de Gamala, a atacar as guarnições de Samaria! Assim preparas um pretexto para abater sobre nós a espada imperial, e inteiramente apagar a vida nacional da Judéia. Tu queres uma revolta para afogares em sangue, e apresentar-te depois a César como soldado vitorioso, administrador sábio, digno de um proconsulado ou de um governo na Itália! E a isso que chamais a fé romana? Eu não estive em Roma, mas sei que a isso se chama lá a fé púnica... Não nos suponhas, porém, tão simples como um pastor de Iduméia! Nós estamos em paz com César, e cumprimos o nosso dever, condenando o homem que se revoltou contra César... Tu não queres cumprir o teu, confirmando essa condenação? Bem! Mandaremos emissários a Roma, levando a nossa sentença e a tua recusa, e tendo salvaguardado perante César a nossa responsabilidade, mostraremos a César como procede na Judéia aquele que representa a lei do Império!... E agora, Pretor, podes voltar ao Pretório.
— E lembra-te dos escudos votivos — gritou Sareias. — Talvez novamente vejas a quem César dá razão!
Pôncio baixara a face, perturbado. Decerto imaginava já ver além, num claro terraço junto ao Mar de Cáprea, Sejano, Cesônio, todos os seus inimigos, falando ao ouvido de Tibério e mostrando-lhe os emissários do templo... César, desconfiado e sempre inquieto, suspeitaria logo um pacto dele com esse «Rei dos Judeus», para sublevarem uma rica provinda imperial... E assim a sua justiça e o orgulho em a manter podiam custar-lhe o proconsulado da Judéia! Orgulho e justiça foram então, na sua alma frouxa, como ondas um momento altas que uma sobre outra se abatem, se desfazem. Veio até ao limiar da porta, devagar, abrindo os braços, como trazido por um impulso magnânimo de conciliação — e começou a dizer, mais branco que a sua toga:
— Há sete anos que governo a Judéia. Encontrastes-me jamais injusto, ou infiel às promessas juradas?... Decerto, as vossas ameaças não me movem... César conhece-me bem... Mas entre nós, para proveito de César, não deve haver desacordo. Sempre vos fiz concessões! Mais que nenhum outro procurador, desde Copônio, tenho respeitado as vossas leis... Quando vieram os dous homens de Samaria poluir o vosso templo, não os fiz eu supliciar? Entre nós não deve haver dissensões, nem palavras amargas...
Um momento hesitou; depois, esfregando lentamente as mãos, e sacudindo-as, como molhadas numa água impura:
— Quereis a vida desse visionário? Que me importa? Tomai-a... Não vos basta a flagelação? Quereis a cruz? Crucificai-o... Mas não sou eu que derramo esse sangue!
O levita macilento bradou com paixão:
— Somos nós, e que esse sangue caia sobre as nossas cabeças!
E alguns estremeceram — crentes de que todas as palavras têm um poder sobrenatural e tornam vivas as cousas pensadas.
Pôncio deixara a sala; o decurião, saudando, cerrou a porta de cedro. Então Rabi Robã voltou-se, sereno, resplandecente como um justo; e adiantando-se por entre os fariseus, que se baixavam a beijar-lhe as franjas da túnica — murmurava com uma grave doçura:
— Antes sofra um só homem, do que sofra um povo inteiro!
Limpando as bagas de suor de que a emoção me alagara a testa, caí, trêmulo, sobre um banco. E, através da minha lassidão, confusamente distinguia no Pretório dous legionários, de cinturão desapertado, bebendo numa grande malga de ferro, que um negro ia enchendo com o odre suspenso aos ombros; adiante uma mulher bela e forte, sentada ao sol, com os filhos pendurados dos dous peitos nus; mais longe um pegureiro envolto em peles, rindo e mostrando o braço manchado de sangue. Depois cerrei os olhos; um momento pensei na vela que deixara na tenda, ardendo junto ao meu catre, fumarenta e vermelha; por fim roçou-me um sono ligeiro... Quando despertei, a cadeira curul permanecia vazia — com a almofada de púrpura em frente, sobre o mármore, gasta, cavada pelos pés do Pretor; e uma multidão mais densa enchia, num longo rumor de arraial, o velho átrio de Herodes. Eram homens rudes, com capas curtas de estamenha, sujas de pó, como se tivessem servido de tapetes sobre as lajes de uma praça. Alguns traziam balanças na mão, gaiolas de rolas; e as mulheres que os seguiam, sórdidas e macilentas, atiravam de longe, com o braço fremente, maldições ao Rabi. Outras, no entanto, caminhando na ponta das sandálias, apregoavam baixo cousas ínfimas e ricas, metidas no seio entre as dobras dos saiões — grãos de aveia torrada, potes de ungüentos, corais, braceletes de filigrana de Sídron. Interroguei Topsius; e o meu douto amigo, limpando os óculos, explicou-me que eram decerto os mercadores contra quem Jesus, na véspera de Páscoa, erguendo um bastão, reclamara a estreita aplicação da lei que interdiz tráficos profanos no templo, fora dos pórticos de Salomão...
— Outra imprudência do Rabi, D. Raposo! — murmurou com ironia o fino historiador.
Entretanto, como caíra a sexta hora judaica e findara o trabalho, vinham entrando obreiros das tinturarias vizinhas, enodoados de escarlate ou azul; escribas das sinagogas, apertando debaixo dos braços os seus tabulários; jardineiros com a fouce a tiracolo, o ramo de murta no turbante; alfaiates com uma longa agulha de ferro pendendo da orelha... Tocadores fenícios a um canto afinavam as harpas, tiravam suspiros das flautas de barro; e diante de nós rondavam duas prostitutas gregas de Tiberíade, com perucas amarelas, mostrando a ponta da língua e sacudindo a roda da túnica, de onde voava um cheiro de mangerona. Os legionários, com as lanças atravessadas no peito, apertavam uma cercadura de ferro em torno de Jesus; e eu, agora, mal podia distinguir o Rabi através dessa multidão sussurrante, em que as consoantes ásperas de Moabe e do deserto se chocavam por sobre a moleza grave da fala caldaica...
Por baixo da galeria veio tilintando uma sineta triste. Era um hortelão que oferecia num cabaz de esparto, acamados sobre folhas de parra, figos rachados de Betfagé. Debilitado pelas emoções, perguntei-lhe, debruçado no parapeito, o preço daquele mimo dos vergéis que os evangelhos tanto louvam. E o homem, rindo, alargou os braços, como se encontrasse o esperado do seu coração: