Выбрать главу

Alguns, escandalizados, gritavam: «Maldito! Maldito!» Um velho, com justiceira gravidade, apanhara duas grossas pedras. E o homem de Cafarnaum, encolhido, esmagado, ainda rosnou surdamente:

— Não fui eu, não fui eu... Eu sou de Ramá!

Gade, furioso, agarrou-o pelas barbas:

— Nesse braço, quando o arregaçaste diante do Rabi, todos te viram duas cicatrizes curvas, como de dous golpes de foice!... E tu vais mostrá-las agora, cão e filho de um cão!

Despedaçou-lhe a manga da túnica nova; arrastou-o em redor, apertado nas suas mãos de bronze, como um bode teimoso; mostrou bem as duas cicatrizes, lívidas no pêlo ruivo; e assim o arremessou desprezivelmente para entre o povo — que, levantando o pó do caminho, perseguiu o homem de Cafarnaum com apupos e com pedradas...

Acercamo-nos de Gade sorrindo, louvando a sua fidelidade a Jesus. Ele, acalmado, estendera as mãos a um vendedor de água, que lhas purificava com um largo jorro do seu odre felpudo; depois, limpando-as à toalha de linho que lhe pendia do cinto:

— Escutai! José de Ramata reclamou o corpo do Rabi; o Pretor concedeu-lhe... Esperai-me à nona hora romana no pátio de Gamaliel... Onde ides?

Topsius confessou que íamos ao templo, por motivos intelectuais de arte, de arqueologia...

— Vão é aquele que admira pedras! — rosnou o altivo idealista.

E afastou-se puxando o capuz sobre a face, por entre as bênçãos do povo que crê e ama os essênios.

Para poupar, até ao templo, a rude caminhada pelo Tiropeu e pela ponte do Xisto, tomamos duas liteiras — das que um liberto de Pôncio ultimamente alugava, junto ao Pretório, «a moda de Roma».

Cansado, estirei-me, com as mãos sob a nuca, no colchão de folhas secas que cheirava a murta; e lentamente começou a invadir-me a alma uma inquietação estranha, temerosa, que já no Pretório me roçara de leve como a asa arrepiada de uma ave agourenta... Ia eu ficar para sempre nesta cidade forte dos judeus? Perdera eu irremediavelmente a minha individualidade de Raposo, de católico, de bacharel, contemporâneo do Times e do gás — para me tornar um homem da Antigüidade clássica, coevo de Tibério? E, dado este mirífico retrogresso nos tempos, se voltasse à minha pátria, que iria eu encontrar à beira do rio claro...

Decerto encontraria uma colônia romana; na encosta da colina mais fresca, uma edificação de pedra onde vive o procônsul; ao lado um templo pequeno de Apolo ou de Marte, coberto de lousa; nos altos um campo entrincheirado, onde estão os legionários; e em redor a vila lusitana, esparsa, com os seus caminhos agrestes, cabanas de pedra solta, alpendres para recolher o gado, e estacadas no lodo onde se amarram jangadas... Assim encontraria a minha pátria. E que faria lá, pobre, solitário? Seria pastor nos montes? Varreria as escadarias do templo, racharia a lenha das coortes para ganhar um salário romano?... Miséria incomparável!

Mas se ficasse em Jerusalém? Que carreira tomaria nesta sombria, devota cidade da Ásia? Tornar-me-ia um judeu, rezando o Esquema, cumprindo o Sabá, perfumando a barba de nardo, indo preguiçar nos átrios do templo, seguindo as lições de um Rabi, e passeando às tardes, com um bastão dourado, nos jardins de Garebe entre os túmulos?... E esta existência igualmente me parecia pavorosa!... Não! A ficar encarcerado no mundo antigo com o doutíssimo Topsius, então deveríamos galopar nessa mesma noite, ao erguer da lua, para José; de lá embarcar em qualquer trirreme fenícia que parasse para Itália; e ir habitar Roma, ainda que fosse numa das escuras vielas do Velabro, numa dessas altas, fumarentas trapeiras, com duzentas escadas a subir, empestadas pelos guisados de alho e tripa, que escassamente atravessam duas calendas sem desabar ou arder.

Assim me inquietava quando a liteira parou; descerrei as cortinas; vi ante mim os vastos granitos da muralha do templo. Penetramos sob a abóbada da porta de Huldá; e fomos logo detidos em quanto os guardas do templo arrancavam a um pegureiro, teimoso e rude, a clava armada de pregos com que ele queria atravessar o santuário. O rolante rumor que vinha de longe, dos átrios, já me atemorizava, semelhante ao de uma selva ou de um grande mar irritado...

E ao emergir enfim da abóbada estreita, agarrei o braço magro do historiador dos Herodes, no deslumbramento que me tomou, intenso e repassado de terror! Um brilho de neve e ouro vibrava profusamente no ar mole, irradiado dos claros mármores, dos granitos brunidos, dos recamos preciosos banhados pelo divino sol de Nizam. Os lisos pátios que eu de manhã vira desertos, alvejando como a água quieta de um lago, desapareciam agora sob o povo que os atulhava, domado e festivo. Os cheiros estonteavam, acres, emanados dos estofos tingidos, das resinas aromáticas, da gordura frigindo em brasas. Sobre o denso ruído passavam roucos mugidos de bois. E perenemente os fumos votivos se sumiam na refulgência do céu...

— Caramba! — murmurei, enfiado. — Isto são magnificências de entupir!

Fomos penetrando sob os pórticos de Salomão, onde ressoava o profano tumulto de um mercado. Por trás de grossas caixas gradeadas encruzavam-se os cambistas, com uma moeda de ouro pendente da orelha entre as melenas sórdidas, trocando o dinheiro sacerdotal do templo pelas moedas pagãs de todas as regiões, de todas as idades, desde as maciças rodelas do velho Lácio, mais pesadas que broquéis, até aos tijolos gravados que circulam como «notas» nas feiras da Assíria. Adiante, brilhava a frescura e abundância de um pomar; as romãs, estaladas de maduras, transbordavam dos gigos; hortelões, com um ramo de amendoeira preso ao carapuço, apregoavam grinaldas de anêmonas ou ervas amargas de Páscoa; jarras de leite puro pousavam sobre sacos de lentilha; e os cordeiros, deitados nas lajes, amarrados pelas patas às colunas, balavam tristemente de sede.

Mas a multidão sobretudo apinhava-se, com suspiros de cobiça, em torno aos tecidos e às jóias. Mercadores das colônias fenícias, das ilhas gregas, de Tárdis, da Mesopotâmia, de Tadmor, uns com soberbas samarras de lã bordada, outros com toscos tabardos de couro pintado, desdobravam os panos azuis de Tiro, que reproduzem o brilho ardente dos céus do Oriente, as sedas impudicas de Sheba, de uma transparência verde que voa na aragem, e esses estofos solenes de Babilônia que sempre me extasiavam, negros com largas flores cor de sangue... Dentro de cofres de cedro, espalhados sobre tapetes da Galácia, reluziam espelhos de prata simulando a lua e os seus raios, sinetes de turmalina que os hebreus usam no peito, manilhas de pedrarias enfiadas em cornos de antílopes, diademas de sal-gema com que se enfeitam os noivos; e, resguardados mais preciosamente, talismãs e amuletos que me pareciam pueris, pedaços de raízes, pedregulhos negros, couros tisnados e ossos com letras.

Topsius ainda parou entre as tendas dos perfumistas, apreçando um esplêndido bastão de Tilos, de uma rara madeira mosqueada como a pele do tigre, mas logo fugimos ao ardente cheiro que ali sufocava, vindo das resinas, das gomas dos países dos negros, dos molhos de plumas de avestruz, da mirra de Oronte, das ceras de Cirenaica, dos óleos rosados de Císico, e das grandes coifas de pele de hipopótamo cheias de violetas secas e de folhas de bácaris...

Entramos então na galeria chamada Real, toda votada à doutrina e à lei. Aí, cada dia, tumultuam rancorosamente as controvérsias entre saduceus, escribas, soforins, fariseus, sectários de Esquemaia, sectários de Hilel, juristas, gramáticos, fanáticos de toda a terra judaica. Junto às colunas de mármore instalavam-se os mestres da lei, sobre altos escabelos, tendo ao lado um prato de metal onde caíam os óbolos dos fiéis; e em torno, encruzados no chão, com as sandálias ao pescoço, as pelicas cobertas de letras vermelhas desdobradas nos joelhos, os discípulos, imberbes ou decrépitos, resmoneavam os ditames, balançando os ombros lentos. Aqui e além, no meio de devotos embebidos, dous doutores disputavam, com as faces assanhadas, sobre temerosos pontos da doutrina. «Pode-se comer um ovo de galinha posto no dia de Sabá? Por que osso da espinha dorsal começa a Ressurreição?» O filosófico Topsius ria, disfarçado numa prega da capa; mas eu tremia quando os doutores, escaveirados e barbudos, se ameaçavam, gritavam racca! racca! — mergulhando a mão no seio da túnica, à procura de um ferro escondido.