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— É José de Ramata — segredou-me o douto historiador. — Vamos ter com ele, ouvir as cousas que convém saber...

Mas nesse instante, dentre o bando sórdido dos servos do templo e dos sacerdotes miseráveis que são nutridos pelos sobejos dos holocaustos, rompeu um ruído mais forte, com o grasnar de corvos num alto. E um deles, colossal, esquálido, com costuras de facadas através da barba rala, atirou os braços para a cruz do Rabi, e gritou numa baforada de vinho:

— Tu que és forte, e querias destruir o templo e as suas muralhas, por que não quebras ao menos o pau dessa cruz?

Em torno estalaram risadas alvares. E outro, espalmando as mãos sobre o peito, curvado com infinito escárnio, saudava o Rabi:

— Herdeiro de Davi, oh meu príncipe, que te parece esse trono?

— Filho de Deus! Chama teu pai! Vê se teu pai te vem salvar! rouquejava a meu lado um magro velho, que tremia e sacudia a barba, apoiado ao seu bordão.

Alguns vendilhões bestiais apanhavam torrões secos a que misturavam cuspo, para arremessar ao Rabi; uma pedra por fim passou, ressoou cavamente no madeiro. Então o centurião correu, indignado; a folha da sua larga espada lampejou no ar; e o bando recuou blasfemando — em quanto alguns embrulhavam na ponta do salão os dedos que escorriam sangue.

Nós acercamo-nos de José de Ramata. Mas o sombrio homem abalou bruscamente, esquivando a importunidade do sábio Topsius. E, magoados com a sua rudeza, ali ficamos junto de um tronco de oliveira seca, defronte das outras cruzes.

Os dous condenados tinham acordado do primeiro desmaio, sob a frescura da aragem da tarde. Um, grosso, peludo, com os olhos esbugalhados, o peito atirado para diante e as costelas a estalar, como se num esforço desesperado quisesse arrancar-se do madeiro — urrava sem descontinuar, medonhamente; o sangue pingava-lhe em gotas lentas dos pés negros, das mãos esgarçadas; e abandonado, sem afeição ou piedade que o assistissem, era como um lobo ferido que uiva e morre num brejo. O outro, delgado e louro, pendia sem um gemido, como uma haste de planta meio quebrada. Defronte dele uma mulher, macilenta e em farrapos, passando a cada instante o joelho sobre a corda, estendia-lhe nos braços uma criancinha nua, e gritava, já rouca: «Olha ainda, olha ainda!» As pálpebras lívidas não se moviam; um negro, que entrouxava as ferramentas da crucificação, ia empurrá-la com brandura; ela emudecia, apertava desesperadamente o filho para que lho não levassem também, batendo os dentes, tremendo toda; e a criancinha entre os farrapos procurava o seio magro.

Soldados, sentados no chão, desdobravam as túnicas dos supliciados; outros, com o elmo enfiado no braço, limpavam o suor — ou por uma malga de ferro, a goles lentos, bebiam a posca. E embaixo, na poeira da estrada, sob o sol mais doce, passava gente recolhendo pacificamente dos campos e dos hortos. Um velho picava as suas vacas para o lado da porta de Gená; mulheres, cantando, carregavam lenha; um cavaleiro trotava, embrulhado num manto branco. Às vezes os que atravessavam o caminho ou voltavam dos pomares de Garebe avistavam as três cruzes erguidas; arregaçavam a túnica, subiam a colina devagar através das urzes. O rótulo da cruz do Rabi, escrito em grego e em latim, causava logo assombro. «Rei dos Judeus!» Quem era esse? Dous moços, patrícios e saduceus, com brincos de pérolas nas orelhas e bordaduras de ouro nos borzeguins, interpelaram o centurião, escandalizados. Por que escrevera o Pretor — «Rei dos Judeus?» Era aquele, ali pregado na cruz, Caio Tibério? Só Tibério era Rei da Judéia! O Pretor quisera ofender Israel! Mas em verdade só ultrajava César!...

Impassível, o centurião falava a dous legionários que remexiam no chão em grossas barras de ferro. E a mulher que acompanhava os saduceus, uma romana miudinha e morena, com fitas de púrpura nos cabelos empoados de azul, contemplava suavemente o Rabi e aspirava o seu frasco de essências — lamentando decerto aquele moço, rei vencido, rei bárbaro, que morria no poste dos escravos.

Cansado, fui sentar-me com Topsius numa pedra. Era perto da oitava hora judaica; o sol, sereno como um herói que envelhece, descia para o mar por sobre as palmeiras de Betânia. Diante de nós o Garebe verdejava, coberto de jardins. Junto às muralhas, no bairro novo de Bezeta, grandes panos vermelhos e azuis secavam em cordas às portas das tinturarias; um lume vermelhejava no fundo de uma forja; crianças corriam brincando sobre a borda de uma piscina. Adiante, no alto da torre hípica, que estendia já a sua sombra sobre o vale de Hinom, soldados de pé na amurada apontavam a seta aos abutres voando no azul. E para além, entre arvoredos, surgiam, frescos e rosados pela tarde, os eirados do palácio de Herodes.

Triste, com o espírito disperso, eu pensava no Egito, nas nossas tendas, na vela que lá me esquecera ardendo, fumarenta e vermelha — quando avistei, subindo a colina devagar, apoiado ao ombro da criança que o conduzia, o velho que já cruzáramos na estrada de Jopé, com uma lira presa à cintura. Os seus passos arrastavam-se mais incertos, na fadiga de uma jornada penosa; uma tristeza abatia-lhe sobre o peito a clara barba ondeante; e debaixo do manto cor do vinho, que lhe cobria a cabeça, as folhas da coroa de louro pendiam raras e murchas.

Topsius gritou-lhe: «Eh, rapsodo!» E quando ele, tenteando as urzes do caminho, se acercou — o douto historiador perguntou-lhe se das doces ilhas do mar trazia algum canto novo. O velho ergueu a face entristecida; e muito nobremente, murmurou que uma mocidade imperecível sorri nos mais antigos cantos da Helênia. Depois, tendo assentado a sandália sobre uma pedra, tomou a lira entre as mãos vagarosas; a criança, direita, com as pestanas baixas, pôs à boca uma flauta de cana; e, no resplendor da tarde que envolvia e dourava Sião, o rapsodo soltou um canto já trêmulo, mas glorioso e repassado de adoração, como ante a ara de um templo, numa praia da Jônia... E eu percebi que ele cantava os deuses, a sua beleza, a sua atividade heróica. Dizia o délfico, imberbe e cor de ouro, afinando os pensamentos humanos pelo ritmo da sua citara; Atenéia, armada e industriosa, guiando as mãos dos homens sobre os teares; Zeus, ancestral e sereno, dando a beleza às raças, a ordem às cidades; e acima de todos, sem forma e esparso, o Fado, mais forte que todos!

Mas subitamente um grito varou o céu no alto da colina, supremo e arrebatado como o de uma libertação! Os dedos frouxos do velho emudeceram entre as cordas de metal; com a cabeça descaída, a coroa do louro épico meio desfolhada, parecia chorar sobre a lira helênica, de ora em diante e para longas idades silenciosa e inútil. E ao lado a criança, tirando a flauta dos lábios, erguia para as cruzes negras os olhos claros — onde subia a curiosidade e a paixão de um mundo novo.

Topsius pediu ao velho a sua história. Ele contou-a, com amargura. Viera de Samnos a Cesaréia e tocava o honnor junto ao templo de Hércules. Mas a gente abandonava o puro culto dos heróis; e só havia festas e oferendas para a boa deusa da Síria! Acompanhara depois uns mercadores a Tiberíade; os homens aí não respeitavam a velhice, e tinham corações interesseiros como escravos. Seguira então pelas longas estradas, parando nos postos romanos onde os soldados o escutavam; nas aldeias de Samaria batia às portas dos lagares; e para ganhar o pão duro, tocara a citara grega nos funerais dos bárbaros. Agora errava ali, nessa cidade onde havia um grande templo, e um deus feroz e sem forma que detestava as gentes. E o seu desejo era voltar a Mileto, sua pátria; sentir o fino murmúrio das águas do Meandro; poder palpar os mármores santos do Templo de Febo Didimeu — onde ele em criança levara num cesto e cantando, os primeiros anéis dos seus cabelos...

As lágrimas rolavam pela sua face, tristes como a chuva por um muro em ruínas. E a minha piedade foi grande por aquele rapsodo das ilhas da Grécia, perdido também na dura cidade dos judeus, envolto pela influência sinistra de um deus alheio! Dei-lhe a minha derradeira moeda de prata. Ele desceu a colina, apoiado ao ombro da criança, lento e curvado, com a orla esfarrapada do manto trapejando nas pernas nuas, e muda e mal segura do cinto a lira heróica de cinco cordas.