No entanto, em torno às cruzes, no alto, crescera um rumor de revolta. E fomos encontrar a gente do templo, com as mãos no ar, mostrando o sol que descia como um escudo de ouro para o lado do Mar de Tiro, intimando o centurião a que baixasse os condenados da cruz, antes de soar a hora santa da Páscoa! Os mais devotos reclamavam que se aplicasse aos crucificados, se ainda viviam, o crurifrágio romano, quebrando-lhes os ossos com barras de ferro, arrojando-os ao despenhadeiro de Hinom. E a indiferença do centurião exasperava o zelo piedoso. Ousaria ele macular o Sabá, deixando um corpo morto no ar? Alguns enrolavam a ponta do manto para correr, e ir a Acra avisar o Pretor.
— O sol declina! O sol vai deixar o Hébron! — gritou de cima de uma pedra um levita, aterrado.
— Acabai-os, acabai-os!
E ao nosso lado, um formoso moço exclamava, requebrando os olhos lânguidos, movendo os braços cheios de manilhas de ouro:
— Atirai o Rabi aos corvos! Dai às aves de rapina a sua páscoa!
O centurião, que espreitava o alto da Torre Mariana, onde os escudos suspensos luziam batidos pelo sol derradeiro — acenou devagar com a espada. Dous legionários, lançando pesadamente ao ombro as barras de ferro, marcharam com ele para as cruzes. Eu, arrepiado, agarrei o braço de Topsius. Mas diante do madeiro de Jesus, o centurião parou, erguendo a mão...
O corpo branco e forte do Rabi tinha a serenidade de um adormecimento; os pés empoeirados, que há pouco a dor torcia dentro das cordas, pendiam agora direitos para o chão, como se o fossem em breve pisar; e a face não se via, tombada para trás molemente por sobre um dos braços da cruz, toda voltada para o céu onde ele pusera o seu desejo e o seu reino... Eu olhei também o céu; rebrilhava, sem uma sombra, sem uma nuvem, liso, claro, mudo, muito alto, e cheio de impassibilidade...
— Quem reclamou o corpo deste homem? — gritou, procurando para os lados, o centurião.
— Eu, que o amei em vida! — acudiu José de Ramata, estendendo por cima da corda o seu pergaminho.
O escravo que esperava junto dele, depôs logo no chão a trouxa de linho e correu para as ruínas do casebre, onde as mulheres choravam entre as amendoeiras.
E por trás de nós, fariseus e saduceus que se tinham juntado, estranhavam com azedume que José de Ramata, um membro do Sanedrim, assim solicitasse o corpo do Rabi para o perfumar e lhe fazer soar em tomo as flautas e os prantos de um funeral... Um deles, corcovado, com esfiadas melenas luzidias de óleo, afirmava que sempre conhecera José de Ramata inclinado para todos os inovadores, todos os sediciosos... Mais de uma vez o vira falar com esse Rabi junto ao Campo dos Tintureiros... E com eles estava Nicodemo, homem rico que tem gados, que tem vinhas, e todas as casas que estão de ambos os lados da Sinagoga de Cirenaica...
Outro, rubicundo e mole, gemeu:
— Que será da nação, se os mais considerados se juntam aos que adulam o pobre, e lhe ensinam que os frutos da terra devem ser igualmente para todos!...
— Raça de Messias! — bradou o mais moço com furor, atirando o bastão contra as urzes. — Raça de Messias, perdição de Israel!
Mas o saduceu de melenas oleosas ergueu devagar a mão, ligada em tiras sagradas:
— Sossegai; Jeová é grande; e tudo em verdade determina para melhor... No templo e no conselho não faltarão jamais homens fortes que mantenham a velha ordem; e em cima dos calvários, felizmente, hão de sempre erguer-se as cruzes!...
E todos sussurraram:
— Amém!
No entanto o centurião, com os soldados atrás levando ao ombro as barras de ferro, marchava para os outros madeiros onde os condenados, vivos e cheios de agonia, pediam água — um pendido e gemendo; outro torcido, com as mãos rasgadas, rugindo terrivelmente. Topsius, que sorria friamente, murmurou: «É tempo, vamos».
Com os olhos alagados de água amarga, tropeçando nas pedras, desci ao lado do fecundo crítico a colina de imolação. E sentia uma densa melancolia entenebrecer a minha alma, pensando nessas cruzes vindouras, anunciadas pelo conservador de guedelha oleosa... Assim seria, oh dura miséria! Sim! De ora em diante por todos os séculos a vir, iria sempre recomeçando em torno à lenha das fogueiras, sob a frialdade das masmorras, junto às escadas das forcas — este afrontoso escândalo de se juntarem sacerdotes, patrícios magistrados, soldados, doutores e mercadores para matarem ferozmente, no alto de um morro, o justo que, penetrado do esplendor de Deus, ensine a adoração em espírito ou cheio do amor dos homens, proclame o reino da igualdade!
Com estes pensamentos recolhi a Jerusalém — em quanto as aves mais felizes que os homens, cantavam nos cedros do Garebe...
Escurecera e era a hora da ceia pascal, quando chegamos à casa de Gamaliel; no pátio, preso a uma argola, estava o burro, albardado de panos pretos, que trouxera o amável físico Eliézer de Silo.
Na sala azul, de teto de cedro, perfumada de malobatro, o austero doutor já nos aguardava estendido no divã de correias brancas, com os pés nus, as largas mangas arregaçadas e pregadas no ombro — e ao lado um bordão de viagem, uma cabaça de água e uma trouxa, emblemas rituais da saída do Egito. Defronte dele, numa mesa incrustada de madrepérola, entre vasos de barro com flores pintadas, açafates de filigrana de prata, transbordando de fruta e pedaços cintilantes de gelo, erguia-se um candelabro em forma de arbusto, tendo na ponta de cada galho uma pálida chama azul e, com os olhos perdidos no seu brilho trêmulo, as mãos cruzadas no ventre, Eliézer, o benigno doutor da tripa, sorria beatificamente encostado a almofadas de couro vermelho. Junto dele dous escabelos, recobertos com tapetes da Assíria, esperavam por mim e pelo sagaz historiador.
Sede bem-vindos — rosnou Gamaliel. — Grandes são as maravilhas de Sião; deveis vir esfomeados...
Bateu de leve as palmas. Os escravos, caminhando sem ruído nas sandálias de feltro, e precedidos majestosamente pelo homem obeso de túnica amarela, entraram, erguendo muito alto largos pratos de cobre que fumegavam.
A um lado tínhamos, para limpar os dedos, um bolo de farinha branca, fino e mole como um pano de linho; do outro um prato largo, com cercadura de pérolas, onde negrejava, entre ramos de salsa, um montão de cigarras fritas; no chão jarros com água de rosa. Cumprimos as abluções; e Gamaliel, tendo purificado a boca com um pedaço de gelo, murmurou a oração ritual sobre a vasta travessa de prata, onde o cabrito assado fazia transbordar o molho de açafrão e saumura.
Topsius, bom sabedor das maneiras orientais, arrotou fortemente, por cortesia, demonstrando fartura e deleite; depois, com uma febra de anho entre os dedos, afirmou, sorrindo aos doutores, que Jerusalém lhe parecera magnífica, formosa de claridade, e bendita entre as cidades...
Eliézer de Silo acudiu, com os olhos cerrados de gozo, como se o acariciassem:
— Ela é uma jóia melhor que o diamante, e o Senhor engastou-a no centro da Terra, para que irradiasse igualmente o seu brilho em redor...
— No centro da Terra!... — murmurou o historiador, com douto espanto.
Sim! E, ensopando um pedaço de bolo no molho de açafrão, o profundo físico explicou a Terra. Ela é chata e mais redonda que um disco; no meio está Jerusalém a santa, como um coração cheio de amor do Altíssimo; em redor a Judéía, rica em bálsamos e palmeiras, cerca-a de sombra e de aromas; para além ficam os pagãos, em regiões duras, onde nem o mel nem o leite abundam; depois são os mares tenebrosos... E por cima o céu, sonoro e sólido.
— Sólido!... — balbuciou o meu sapiente amigo, esgazeado.
Os escravos serviam em taças de prata cerveja amarela da Média. Com solicitude Gamaliel aconselhou-me que, para lhe avivar o sabor, trincasse uma cigarra frita. E Rabi Eliézer, sábio entre todos nas cousas da natureza, revelava a Topsius a divina construção do céu.