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Ele é feito de sete duras, maravilhosas, rutilantes camadas de cristal; por cima delas constantemente rolam as grandes águas; sobre as águas flutua, num fulgor, o espírito de Jeová... Estas lâminas de cristal, furadas como um crivo, resvalam umas sobre as outras com uma música doce e lenta, que os profetas mais queridos por vezes ouviam... Ele mesmo, uma noite que orava no eirado da sua casa em Silo, sentira por um raro favor do Altíssimo essa harmonia, tão penetrante e suave, que as lágrimas uma a uma lhe caíam nas mãos abertas... Ora, nos meses de Quisleu e de Tebé os furos das lâminas coincidem, e por eles caem sobre a terra as gotas das águas eternas, que fazem crescer as searas!

— A chuva? — perguntou Topsius, com acatamento.

— A chuva! — respondeu Eliézer, com serenidade.

Topsius, mordendo um sorriso, ergueu para Gamaliel os seus óculos de ouro, que faiscavam de sábia ironia; mas o piedoso filho de Simeão conservava sobre a face, emagrecida no estudo da lei, uma seriedade impenetrável. Então o historiador, remexendo as azeitonas, desejou saber, do esclarecido físico, por que tinham os cristais do céu essa cor azul que enleva a alma...

Eliézer de Silo elucidou-o:

Uma grande montanha azul, invisível até hoje aos homens, ergue-se a ocidente; ora, quando o sol abate, a sua reverberação banha o cristal do céu e anila-o. E talvez nessa montanha que vivem as almas dos justos!...

Gamaliel tossiu brandamente e murmurou: «Bebamos, louvando o Senhor!»

Ergueu uma taça cheia de vinho de Siquém, pronunciou sobre ela uma bênção — e passou-ma, chamando a paz sobre o meu coração. Eu rosnei: «À sua, muitos e felizes!» E Topsius, recebendo a taça com veneração, bebeu — «à prosperidade de Israel, à sua força ao seu saber!»

Depois os servos, precedidos pelo homem obeso de túnica amarela, que fazia ressoar sobre as lajes com pompa a sua vara de marfim, trouxeram a mais devota comida pascal — as ervas amargas.

Era uma travessa repleta de alface, agriões, chicória, macela, com vinagre e grossas pedras de sal. Gamaliel mastigava-as solenemente, como cumprindo um rito. Elas representavam as amarguras de Israel, no cativeiro do Egito. E Eliézer, chupando os dedos, declarou-as deliciosas, fortificadoras e repassadas de alta lição espiritual.

Mas Topsius lembrou, fundado nos autores gregos, que todos os legumes amolecem no homem a virilidade, lhe descoram a eloqüência, lhe enervam o heroísmo; e com torrencial erudição citou logo Teofrasto, Êubulo, Nicandro na segunda parte do seu Dicionário, Fênias no seu Tratado das Plantas, Défilo e Epicarmo!

Gamaliel, secamente, condenou a inanidade dessa ciência — porque Hecateu de Mileto, só no primeiro livro da sua Descrição da Ásia, encerra cinqüenta e três erros, quatorze blasfêmias e cento e nove omissões... Assim dizia o leviano grego que a tâmara, maravilhoso dom do Altíssimo, enfraquece o intelecto!...

— Mas — exclamou Topsius com ardor — a mesma doutrina estabelece Xenofonte no livro segundo do Anábasis! E Xenofonte...

Gamaliel rejeitou a autoridade de Xenofonte. Então Topsius, vermelho, batendo com uma colher de ouro na borda da mesa, exaltou a eloqüência de Xenofonte, a forte nobreza do seu sentimento, a sua terna reverência por Sócrates!... E enquanto eu partia um empadão de Comagênia, os dous facundos doutores, asperamente, romperam debatendo Sócrates. Gamaliel afirmava que as vozes secretas ouvidas por Sócrates, e que tão divina e puramente o governavam, eram murmúrios distantes que lhe chegavam da Judéia, repercussões miraculosas da voz do Senhor... Topsius pulava, encolhia os ombros, com desesperado sarcasmo. Sócrates inspirado por Jeová! Ora lérias!

No entanto era certo (insistia Gamaliel, já lívido), que os gentílicos iam emergindo da sua treva, atraídos pela luz forte e pura que derramava Jerusalém; porque a reverência pelos deuses aparecia em Ésquilo, profunda e cheia de terror; em Sófocles, amável e cheia de serenidade; em Eurípides, superficial e cheia de dúvida... E cada um dos trágicos dava assim, largamente, um passo para o Deus verdadeiro!

— Oh Gamaliel, filho de Simeão — murmurou Eliézer de Silo -, tu, que possuis a verdade, para que dás acesso no teu espírito aos pagãos?

Gamaliel respondeu:

— Para os desprezar melhor dentro em mim!

Farto de tão clássica controvérsia, acheguei a Eliézer um covilhete de mel do Hébron — e contei-lhe quanto me agradara o caminho do Garebe entre jardins. Ele concordou que Jerusalém, cercada de vergéis, era doce à vista como a fronte da noiva toucada de anêmonas. Depois estranhou que eu escolhesse, para me recrear, esses arredores de Gihon, cheios de açougues, junto ao morro escalvado onde se erguem as cruzes. Mais suave me teria sido a fragrância de Siloé...

— Fui ver Jesus — atalhei severamente. — Fui ver Jesus, crucificado esta tarde por mandado do Sanedrim...

Eliézer, com oriental cortesia, bateu no peito demonstrando mágoa. E quis saber se pertencia ao meu sangue, ou partilhara comigo o pão de aliança, esse Jesus que eu fora assistir na sua morte de escravo.

Eu considerei-o, assombrado:

— É o Messias!

E ele considerou-me mais assombrado ainda, com um fio de mel a escorrer-lhe na barba.

Oh raridade! Eliézer, doutor do templo, físico do Sanedrim, não conhecia Jesus de Galiléia! Atarefado com os enfermos que, pela Páscoa, atulham Jerusalém (confessou ele) não fora ao Xisto, nem à loja do perfumista Cleos, nem aos eirados de Hanão, onde as novas voam mais numerosas que as pombas; por isso nada ouvira da aparição de um Messias...

De resto, acrescentou, não podia ser o Messias! Esse deveria chamar-se Manahem «o consolador», porque traria a consolação a Israel. E haveria dous Messias: o primeiro, da tribo de José, seria vencido por Gogue; o segundo, filho de Davi e cheio de força, venceria Magogue. Antes dele nascer começariam sete anos de maravilhas; haveria mares evaporados, estrelas despregadas do céu, fomes e tais farturas que até as rochas dariam fruto; no último ano correria sangue entre as nações; enfim ressoaria uma voz portentosa; e, sobre o Hébron, com uma espada de fogo, surgiria o Messias!

Dizia estas cousas peregrinas, fendendo a casca de um figo. Depois com um suspiro:

— Ora, ainda nenhuma dessas maravilhas, meu filho, anunciou a consolação!...

E atolou os dentes no figo.

Então fui eu, Teodorico, ibero, de um remoto município romano, que contei a um físico de Jerusalém, criado entre os mármores do templo, a vida do Senhor! Disse as cousas doces e as cousas fortes; as três claras estrelas sobre o seu berço; a sua palavra amansando as águas de Galiléia; o coração dos simples palpitando por ele; o reino do céu que prometia e a sua face augusta brilhando diante do Pretor de Roma...

— Depois os padres, os patrícios e os ricos crucificaram-no!

Doutor Eliézer, volvendo a remexer o açafate de figos murmurou pensativamente:

Triste, triste!... Todavia. meu filho, o Sanedrim é misericordioso. Em sete anos, desde que o sirvo, apenas tem lançado três sentenças de morte... Sim, decerto o mundo necessita bem escutar uma palavra de amor e de justiça; mas Israel tem sofrido tanto com inovadores, com profetas!... Enfim, nunca se deveria derramar o sangue do homem... E a verdade é que estes figos, de Beftagé, não valem os meus de Silo!

Calado, enrolei um cigarro. E nesse instante o douto Topsius, debatendo ainda com Gamaliel o helenismo e as escolas socráticas, empinado, de óculos na ponta do bico, soltava este resumo forte:

— Sócrates é a semente; Platão a flor; Aristóteles o fruto... E desta árvore, assim completa, se tem nutrido o espírito humano!

Mas Gamaliel subitamente ergueu-se; doutor Eliézer também, arrotando com efusão. Ambos tomaram os cajados, ambos gritaram:

— Aleluia! Louvai o Senhor que nos tirou da terra do Egito!

Findara a ceia pascal. O esclarecido historiador, que limpava o suor da controvérsia, olhou logo vivamente o relógio e rogou a Gamaliel permissão de subir ao terraço, a refrescar a sua emoção no ar macio de Ofel... O doutor da lei conduziu-nos à varanda, alumiada palidamente por lâmpadas de mica, mostrou-nos a íngreme escada de ébano que levava aos eirados; e chamando sobre nós a graça do Senhor, penetrou com Eliézer num aposento cerrado por cortinas de Mesopotâmia — de onde saiu um aroma, um fino rumor de risos e sons lentos de lira.