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Gade caiu pesadamente de joelhos, soluçando; e o homem, como se todas as cousas tivessem sido ditas, deu um passo para buscar a sua lâmpada ao poço. Topsius deteve-o, com avidez:

— Escuta! Preciso toda a verdade. Que fizestes depois?

O homem parou junto a um dos pilares de madeira. Depois, alargando os braços na escuridão e tão perto das nossas faces, que eu sentia o seu bafo quente:

— Era necessário, para bem da terra, que se cumprissem as profecias! Durante duas horas José de Ramata orou, prostrado. Não sei se o Senhor lhe falou em segredo; mas, quando se ergueu, resplandecia todo e gritou: «Elias veio! Elias veio! Os tempos chegaram!» Depois, por sua ordem, enterramos o Rabi numa caverna que ele tem, talhada na rocha, por trás do moinho...

Atravessou o pátio, tomou a sua lâmpada. E recolhia lentamente, sem um rumor, quando Gade, erguendo a face, o chamou através dos seus soluços:

— Escuta ainda! Grande é o Senhor, na verdade!... E o outro túmulo, onde as mulheres de Galiléia o deixaram, ligado e envolvidos em panos, com aloés e com nardo?

O homem, sem parar, murmurou, já sumido na treva:

— Lá ficou aberto, lá ficou vazio!...

Então Topsius arrastou-me pelo braço, tão arrebatadamente, que tropeçávamos no escuro contra os pilares da varanda. Uma porta ao fundo abriu-se, com um brusco estrondo de ferros caídos... E vi uma praça, rodeada de pálidos arcos, triste e fria, com erva entre as fendas das lajes dessoldadas, como numa cidade abandonada. Topsius estacou; os seus óculos faiscavam:

— Teodorico, a noite termina; vamos partir de Jerusalém!... A nossa jornada ao passado acabou... A lenda inicial do cristianismo está feita, vai findar o mundo antigo!

Eu considerei, assombrado e arrepiado, o douto historiador. Os seus cabelos ondeavam agitados por um vento de inspiração. E o que levemente saía dos seus finos lábios retumbava, terrível e enorme, caindo sobre o meu coração:

— Depois de amanhã, quando acabar o Sabá, as mulheres de Galiléia voltarão ao sepulcro de José de Ramata, onde deixaram Jesus sepultado... E encontram-no aberto, encontram-no vazio!... «Desapareceu, não está aqui!...» Então Maria de Magdala, crente e apaixonada, irá gritar por Jerusalém — «ressuscitou, ressuscitou!» E assim o amor de uma mulher muda a face do mundo, e dá uma religião mais à humanidade!

E, atirando os braços ao ar, correu através da praça — onde os pilares de mármore começavam a tombar, sem ruído e molemente. Arquejando, paramos no portão de Gamaliel. Um escravo, tendo ainda nos pulsos pedaços de cadeias partidas, segurava os nossos cavalos. Montamos. Com um fragor de pedras levadas numa torrente, varamos a Porta de Ouro; e galopamos para Jericó, pela estrada romana de Siquém, tão vertiginosamente que não sentíamos as ferraduras ferir as lajes negras de basalto. Adiante, a capa branca de Topsius torcia-se açoutada por uma rajada furiosa. Os montes corriam aos lados, como fardos sobre dorsos de camelos na debandada de um povo. As ventas da minha égua dardejavam jactos de fumo avermelhado; e eu agarrava-me às crinas, tonto, como se rolasse entre nuvens...

De repente avistamos, alargada, cavada até às serras de Moabe, a planície de Canaã. O nosso acampamento alvejava junto às brasas dormentes da fogueira. Os cavalos estacaram, tremendo. Corremos às tendas; sobre a mesa, a vela que Topsius acendera para se vestir, havia mil e oitocentos anos, morria num fogacho lívido... E derreado da infinita jornada, atirei-me para o catre, sem mesmo descalçar as botas brancas de pó...

Imediatamente me pareceu que uma tocha fumegante penetrara na tenda, esparzindo um brilho de ouro... Ergui-me, assustado. Num largo raio de sol, vindo dos montes de Moabe, o jucundo Pote entrava, em mangas de camisa, com as minhas botas na mão!

Arrojei a manta, arredei os cabelos, para verificar melhor a mudança terrível que desde a véspera se fizera no universo! Sobre a mesa jaziam as garrafas do champagne, com que brindáramos à ciência e à religião. O embrulho da coroa de espinhos pousava à minha cabeceira. Topsius, no seu catre, em camisola, e com um lenço amarrado na testa, bocejava, pondo os óculos de ouro no bico. E o risonho Pote, censurando a nossa preguiça, queria saber se apetecíamos nessa manhã — «tapioca ou café».

Deixei sair deliciosamente do peito um ruidoso, consolado suspiro. E no júbilo triunfal de me sentir reentrado na minha individualidade e no meu século, pulei sobre o colchão com a fralda ao vento, bradei:

— Tapioca, meu Pote! Uma tapioca bem docinha e molezinha, que saiba bem ao meu Portugal...

Capítulo 4

Ao outro dia, que fora um radioso domingo, levantamos de Jericó as nossas tendas; e caminhando com o sol para ocidente, pelo Vale de Querite, começamos a romagem de Galiléia.

Mas ou fosse que a consoladora fonte da admiração houvesse secado dentro em mim, ou que a minha alma, arrebatada um momento aos cimos da história e batida aí por ásperas rajadas de amoção, não se pudesse já aprazer nestes quietos e ermos caminhos da Síria — senti sempre indiferença e cansaço, do país de Efraim ao país de Zebelon.

Quando nessa noite acampamos em Betel, vinha a lua cheia saindo por trás dos montes negros de Gileade... O festivo Pote mostrou-me logo o chão sagrado em que Jacó, pastor de Bersabé, tendo adormecido sobre uma rocha, vira uma escada que faiscava, fincada a seus pés e arrimada às estrelas, por onde ascendiam e baixavam, entre terra e céu, anjos calados, com as asas fechadas... Eu bocejei formidavelmente e rosnei: — «Tem seu chic!...»

E assim rosnando e bocejando atravessei a terra dos prodígios. A graça dos vales foi-me tão fastidiosa como a santidade das ruínas. No poço de Jacó, sentado nas mesmas pedras em que Jesus, cansado como eu da calma destas estradas e como eu bebendo do cântaro de uma samaritana, ensinara a nova e pura maneira de adorar; nas encostas do Carmelo, numa cela de mosteiro, ouvindo de noite ramalhar os cedros que abrigaram Elias, e gemerem embaixo as ondas, vassalas de Hirão, Rei de Tiro; galopando com o albornoz ao vento pela planície de Esdrelon; remando docemente no Lago de Genesaré, coberto de silêncio e de luz — sempre o tédio marchou a meu lado como companheiro fiel, que a cada passo me apertava ao seu peito mole, debaixo do seu manto pardo...

Às vezes, porém, uma saudade fina e gostosa, vinda do remoto passado, levantava de leve a minha alma, como uma aragem lenta faz a uma cortina muito pesada... E então, fumando diante das tendas, trotando pelo leito seco das torrentes, eu revia, com deleite, pedaços soltos dessa Antigüidade que me apaixonara: a terma romana, onde uma criatura maravilhosa de mitra amarela se ofertava, lasciva e pontifical; o formoso Manassés, levando a mão à espada cheia de pedrarias; mercadores, no templo, desdobrando os brocados de Babilônia; a sentença do Rabi com um traço vermelho, num pilar de pedra, à porta Judiciária; ruas iluminadas, gregos dançando a calabida... E era logo um desejo angustioso de remergulhar nesse mundo irrecuperável. Cousa risível! Eu, Raposo e bacharel, no farto gozo de todos os confortos da civilização — tinha saudade dessa bárbara Jerusalém, que habitara num dia do mês de Nizam sendo Pôncio Pilatos procurador da Judéia!

Depois estas memórias esmoreciam, como fogos a que falta a lenha. Na minha alma só restavam cinzas — e, diante das ruínas do Monte Ebal, ou sob os pomares que perfumam Siquém, a levítica, recomeçava a bocejar.