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Quando chegamos a Nazaré, que aparece na desolação da Palestina como um ramalhete pousado na pedra de uma sepultura — nem me interessaram as lindas judias, por quem se banhou de ternura o coração de Santo Antonino. Com a sua cântara vermelha ao ombro, elas subiam por entre os sicômoros à fonte onde Maria, mãe de Jesus, ia todas as tardes, cantando como estas e como estas vestida de branco... O jucundo Pote, torcendo os bigodes, murmurava-lhes madrigais; elas sorriam, baixando as pestanas pesadas e meigas. Era diante desta suave modéstia que Santo Antonino, apoiado ao seu bordão, sacudindo a sua longa barba, suspirava: «Oh virtudes claras, herdadas de Maria cheia de graça!» Eu, por mim, rosnava secamente: «lambisgóias»!

Através de vielas onde a vinha e a figueira abrigam casas humildes, como convém à doce aldeia daquele que ensinou a humildade, trepamos ao cimo de Nazaré, batido sempre do largo vento que sopra das iduméias. Aí Topsius tirou o barrete saudando essas planícies, esses longes, que decerto Jesus vinha contemplar, concebendo diante da sua luz e da sua graça as incomparáveis belezas do reino de Deus... O dedo do douto historiador ia-me apontando todos os lugares religiosos — cujos nomes sonoros caem na alma com uma solenidade de profecia, ou com um fragor de batalha: Esdrelon, Endor, Sulém, Tabor... Eu olhava, enrolando um cigarro. Sobre o Carmelo sorria uma brancura de neve; as planícies da Pérea fulguravam, rolando uma poeira de ouro; o Golfo de Caifa era todo azul; uma tristeza cobria ao longe as montanhas de Samaria; grandes águias torneavam sobre os vales... Bocejando, rosnei:

— Vistazinha catita!

Uma madrugada, enfim, recomeçamos a descer para Jerusalém. Desde Samaria a Ramá fomos alagados por esses vastos e negros chuveiros da Síria, que armam logo torrentes rugindo entre as rochas, sob os aloendros em flor; depois, junto à colina de Gibeá onde outrora no seu jardim, entre o louro e o cipreste, Davi tangia harpa olhando Sião — tudo se vestiu de serenidade e de azul. E uma inquietação engolfou-se em minha alma, como um vento triste numa ruína... Eu ia avistar Jerusalém! Mas — qual? Seria a mesma que vira um dia, resplandecendo suntuosamente ao sol de Nizam, com as torres formidáveis, o templo cor de ouro e cor de neve, Acra cheia de palácios, Bezeta regada pelas águas de Enrogel?...

— El-Kurds! El-Kurds! — gritou o velho beduíno, com a lança no ar, anunciando pela sua alcunha muçulmana a cidade do Senhor.

Galopei, a tremer... E logo a vi, lá embaixo, junto à ravina do Cédron, sombria, atulhada de conventos e agachada nas suas muralhas caducas — como uma pobre, coberta de piolhos, que para morrer se embrulha a um canto nos farrapos do seu mantéu.

Bem depressa, transpassada a Porta de Damasco, as patas dos nossos cavalos atroaram o lajedo da Rua Cristã; rente ao muro um frade gordo, com o breviário e o guarda-sol de paninho entalados sob o braço, ia sorvendo uma pitada estrondosa. Apeamos no Hotel do Mediterrâneo; no esguio pátio, sob um anúncio das «Pílulas Holloway», um inglês, com um quadrado de vidro colado ao olho claro, os sapatões atirados para cima do divã de chita, lia o Times; por trás de uma varanda aberta, onde secavam ceroulas brancas com nódoas de café, uma goela roufenha vozeava: C’est le beau Nicolas, holà!... Ah! era esta, era esta, a Jerusalém católica!... Depois ao penetrar no nosso quarto, claro e alegrado pelo tabique de ramagens azuis, ainda um instante me rebrilhou na memória certa sala, com candelabros de ouro e uma estátua de Augusto, onde um homem togado estendia o braço e dizia: «César conhece-me bem!»

Corri logo à janela a sorver o ar vivo da moderna Sião. Lá estava o convento com as suas persianas verdes fechadas, e as goteiras agora mudas nesta tarde de sol e doçura... Entre socalcos de jardins, lá se torciam as escadinhas, cruzadas por franciscanos de alpercatas, por judeus magros de sujas melenas... E que repouso na frescura destas paredes de cela, depois das estradas abrasadas de Samaria! Fui apalpar a cama fofa. Abri o guarda-roupa de mogno. Fiz uma carícia leve ao embrulhinho da camisa de Mary; redondo e gracioso com o seu nastro vermelho, aninhado entre peúgas.

Neste instante o jucundo Pote entrou a trazer-me o precioso embrulho da coroa de espinhos, redondo e nítido com o seu nastro vermelho; e alegremente deu-me as novas de Jerusalém. Colhera-as do barbeiro da Via-Dolorosa e eram consideráveis. De Constantinopla viera um firman exilando o patriarca grego, pobre velho evangélico, com uma doença de fígado, que socorria os pobres. O senhor Cônsul Damiani afirmara na loja de relíquias da Rua Armênia, batendo o pé, que antes do dia de Reis, por causa da birra do murro entre os franciscanos e a Missão Protestante, a Itália tomaria armas contra a Alemanha. Em Betlém, na Igreja da Natividade, um padre latino numa bulha, ao benzer hóstias, rachara a cabeça de um padre copta com uma tocha de cera... E enfim, novidade mais jubilosa, abrira-se para alegria de Sião, ao pé da porta de Herodes, deitando sobre o Vale de Josafate, um café com bilhares, chamado o Retiro do Sinai!

Subitamente, saudades dolentes do passado, cinzas que me cobriam a alma, foram varridas por um fresco vento de mocidade e de modernidade... Pulei sobre o ladrilho sonoro:

— Viva o belo Retiro! A ele! Às iscas! À carambola! Irra! Que estava morto por me refestelar! E depois às mulherinhas!... Põe aí o embrulho da coroa, belo Pote... Isso significa muito bago! Jesus, o que aí a Titi se vai babar!... Planta-o em cima da cômoda, entre os castiçais... E logo, depois da comidinha, Potezinho, para o Retiro do Sinai!

Justamente o sábio Topsius entrava esbaforido, com uma formosa nova histórica! Durante a nossa romagem a Galiléia a Comissão de Escavações Bíblicas encontrara, sob lixos seculares, uma das lápides de mármore que, segundo Josefo e Fílon e os talmudes, se erguiam no templo, junto à Porta Bela, com uma inscrição proibindo a entrada aos gentílicos... E ele instava que marchássemos, engolida a sopa, a pasmar para essa maravilha... Um momento ainda me rebrilhou na memória uma porta, bela em verdade, preciosa e triunfal, sobre os seus quatorze degraus de mármore verde de Numídia...

Mas sacudi desabridamente os braços, numa revolta:

— Não quero! — gritei. — Estou farto!... Irra! E aqui lho declaro, Topsius, solenemente; de hoje em diante não torno a ver nem mais um pedregulho, nem mais um sítio de religião... Irra! Tenho a minha dose; e forte, muito forte, doutor!

O sábio, enfiado, abalou com a rabona colada às nádegas!

Nessa semana ocupei-me em documentar e empacotar as relíquias menores que destinava à tia Patrocínio. Copiosas e bem preciosas eram elas — e com devotíssimo lustre brilhariam no tesouro da mais orgulhosa Sé! Além das que Sião importa de Marselha em caixotes — rosários, bentinhos, medalhas, escapulários; além das que fornecem no Santo Sepulcro os vendilhões — frascos de água do Jordão, pedrinhas da Via-Dolorosa, azeitonas do Monte Olivete, conchas do Lago de Genesaré — eu levava-lhe outras raras, peregrinas, inéditas... Era uma tabuinha aplainada por São José; duas palhinhas do curral onde nasceu o Senhor; um bocadinho do cântaro com que a Virgem ia à fonte; uma ferradura do burrinho em que fugiu a Santa Família para a terra do Egito; e um prego torto e ferrugento...

Estas preciosidades, embrulhadas em papéis de cor, atadas com fitinhas de seda, guarnecidas de tocantes dísticos — foram acondicionadas num forte caixote, que a minha prudência fez revestir de chapas de ferro. Depois cuidei da relíquia maior, a coroa de espinhos, fonte de celestiais mercês para a Titi — e de sonora pecúnia para mim, seu cavaleiro e seu romeiro.

Para a encaixotar, ambicionei uma madeira preclara e santa. Topsius aconselhava o cedro do Líbano — tão belo que, por ele, Salomão fez aliança com Hirão, Rei de Tiro. O jucundo Pote, porém, menos arqueológico, lembrou o honesto pinho de Flandres benzido pelo patriarca de Jerusalém. Eu diria à Titi que os pregos para o pregar tinham pertencido à Arca de Noé; que um ermitão os achara miraculosamente no Monte Arará; que a ferrugem que neles deixara o lodo primitivo, dissolvida em água benta, curava catarros... Tramamos estas cousas consideráveis, cervejando no Sinai.