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Fiquei mono... Quem sabe? Era aquele, talvez, em toda a vasta terra, o único coração em que o meu poderia repousar, como num asilo seguro... Mas quê! Ela era só monja, eu só sobrinho. Ela ia para o seu deus; eu ia para a minha tia. E quando nestas águas os nossos peitos se cruzavam, e sentindo a sua concordância, batiam mudamente um para o outro — o meu barco corria com vela alegre para Ocidente, e o barco que a levava, lento e negro, ia a remos para Oriente... Desencontro contínuo das almas congêneres — neste inundo de eterno esforço e de eterna imperfeição!

Capítulo 5

Duas semanas depois, rolando na tipóia do Pingalho pelo Campo de Santana, com a portinhola entreaberta e a bota estendida para o estribo, avistei entre as árvores sem folhas o portão negro da casa da Titi! E, dentro desse duro calhambeque, eu resplandecia mais que um gordo César, coroado de folhagens de ouro, sobre o seu vasto carro, voltando de domar povos e deuses.

Era decerto em mim o deleite de rever, sob aquele céu de janeiro, tão azul e tão fino, a minha Lisboa, com as suas quietas ruas cor de caliça suja, e aqui e além as tabuinhas verdes descidas nas janelas, como pálpebras pesadas de langor e de sono. Mas era, sobretudo, a certeza da gloriosa mudança, que se fizera na minha fortuna doméstica e na minha influência social.

Até aí, que fora eu em casa da senhora Dona Patrocínio? O menino Teodorico que, apesar da sua carta de doutor e das suas barbas de Raposão, não podia mandar selar a égua para ir espontar o cabelo à Baixa, sem implorar licença à Titi... E agora? O nosso Doutor Teodorico, que ganhara, no contato santo com os lugares do Evangelho, uma autoridade quase pontifical! Que fora eu até aí, no Chiado, entre os meus concidadãos? O Raposito, que tinha um cavalo. E agora? O grande Raposo, que peregrinara poeticamente na Terra Santa, como Chateaubriand, e que, pelas remotas estalagens em que pousara, pelas roliças circassianas que beijocara, podia parolar com superioridade na Sociedade de Geografia ou em asa da Benta Bexigosa...

O Pingalho estacou as pilecas. Saltei, com o caixote da relíquia estreitado ao coração... E, ao fundo do pátio triste, lajeado de pedrinha, vi a senhora Dona Patrocínio das Neves, vestida de sedas negras, toucada de rendas negras, arreganhando no carão lívido, sob os óculos defumados, as dentuças risonhas para mim!

— Oh, Titi!

— Oh, menino!

Larguei o caixote santo, caí no seu peito seco; e o cheirinho que vinha dela a rapé, a capela e a formiga, era como a alma esparsa das ousas domésticas que me envolvia, para me fazer reentrar na piedosa rotina do lar.

— Ai filho, que queimadinho que vens!...

— Titi, trago-lhe muitas saudades do Senhor...

— Dá-mas todas; dá-mas todas!...

E retendo-me, cingido à dura tábua do seu peito, roçou os beiços frios pelas minhas barbas — tão respeitosamente como se fossem as barbas de pau da imagem de São Teodorico.

Ao lado, a Vicência limpava o olho com a ponta do avental novo. O Pingalho descarregara a minha mala de couro. Então, erguendo o precioso caixote de pinho de Flandres benzido, murmurei, com uma modéstia cheia de unção:

— Aqui está ela, Titi, aqui está ela! Aqui a tem, aí lha dou, a sua divina relíquia, que pertenceu ao Senhor!

As emaciadas, lívidas mãos da hedionda senhora, tremeram ao tocar aquelas tábuas que continham o princípio miraculoso da sua saúde e o amparo das suas aflições. Muda, tesa, estreitando sofregamente o caixote, galgou os degraus de pedra, atravessou a sala de Nossa Senhora das Sete-Dores, enfiou para o oratório. Eu atrás, magnífico, de capacete, ia rosnando: «ora vivam! ora vivam!» — à cozinheira, à desdentada Eusébia, que se curvavam no corredor como à passagem do Santíssimo.

Depois, no oratório, diante do altar juncado de camélias brancas, fui perfeito. Não ajoelhei, não me persignei; de longe com dous dedos, fiz ao Jesus de ouro, pregado na sua cruz, um aceno familiar — e atirei-lhe um olhar, muito risonho e muito fino, como a um velho amigo com quem se tem velhos segredos. A Titi surpreendeu esta intimidade com o Senhor; e quando se rojou sobre o tapete (deixando-me a almofada de veludo verde), foi tanto para o seu Salvador como para o seu sobrinho, que levantou as mãos adorabundas.

Findos os padre-nossos de graças pelo meu regresso, ela, ainda prostrada, lembrou com humildade:

— Filho, seria bom que eu soubesse que relíquia é, para as velas, para o respeito...

Acudi, sacudindo os joelhos:

— Logo se verá. À noite é que se desencaixotam as relíquias... Foi o que me recomendou o patriarca de Jerusalém... Em todo o caso acenda a Titi mais quatro luzes, que até a madeirinha é santa!

Acendeu-as, submissa; colocou, com beato cuidado, o caixote sobre o altar; depôs-lhe um beijo chilreado e longo; estendeu-lhe por cima uma esplêndida toalha de rendas... Eu então, episcopalmente, tracei sobre a toalha, com dous dedos, uma bênção em cruz.

Ela esperava, com os óculos negros postos em mim, embaciados de ternura:

— E agora, filho, agora?

— Agora o jantarinho, Titi, que tenho a tripa a tinir...

A senhora Dona Patrocínio logo, apanhando as saias, correu a apressar a Vicência. Eu fui desafivelar a maleta para o meu quarto — que a Titi esteirara de novo; as cortinas de cassa tufavam, tesas de goma; um ramo de violetas perfumava a cômoda.

Longas horas nos detivemos à mesa — onde a travessa de arroz-doce ostentava as minhas iniciais, debaixo de um coração e de uma cruz, desenhadas à canela pela Titi. E, inesgotavelmente, narrei a minha santa jornada. Disse os devotos dias do Egito, passados a beijar uma por uma as pegadas que lá deixara a Santa Família na sua fuga; disse o desembarque em Jafa com o meu amigo Topsius, um sábio alemão, doutor em teologia, e a deliciosa missa que lá saboreáramos; disse as colinas de Judá cobertas de presepes onde eu, com a minha égua pela rédea, ia ajoelhar, transmitindo às imagens e às custódias os recados da tia Patrocínio... Disse Jerusalém, pedra a pedra! E a Titi, sem comer, apertando as mãos, suspirava com devotíssimo pasmo:

— Ai que santo! Ai que santo ouvir estas cousas! Jesus, até dá uns gostinhos por dentro!...

Eu sorria, humilde. E cada vez que a considerava de soslaio, ela me parecia outra Patrocínio das Neves. Os seus fundos óculos negros, que outrora reluziam tão asperamente, conservavam um contínuo embaciamento de ternura úmida. Na voz, que perdera a rispidez silvante, errava, amolecendo-a, um suspiro acariciador e fanhoso. Emagrecera; mas nos seus secos ossos parecia correr enfim um calor de medula humana! Eu pensava — «Ainda a hei de pôr como um veludo.»

E, sem moderação, prodigalizava as provas da minha intimidade com o céu.

Dizia: — «Uma tarde, no Monte das Oliveiras, estando a rezar, passou de repente um anjo...» Dizia: — «Tirei-me dos meus cuidados, fui ao túmulo de Nosso Senhor, abri a tampa, gritei para dentro...»

Ela pendia a cabeça, esmagada, ante estes privilégios prodigiosos, só comparáveis aos de Santo Antão ou de São Brás.

Depois enumerava as minhas tremendas rezas, os meus terríficos jejuns. Em Nazaré, ao pé da fonte onde Nossa Senhora enchia o cântaro, rezara mil ave-marias, de joelhos à chuva... No deserto, onde vivera São João, sustentara-me como ele de gafanhotos...

E a Titi, com baba no queixo:

— Ai que ternura, ai que ternura, os gafanhotinhos!... E que gosto para o nosso rico São João!... Como ele havia de ficar! E olha, filho, não te fizeram mal?

— Se até engordei, Titi! Nada, era o que eu dizia ao meu amigo alemão: «Já que a gente veio a uma pechincha destas, é aproveitar, e salvar a nossa alminha...»

Ela virava-se para a Vicência — que sorria, pasmada, no seu pouso tradicional entre as duas janelas, sob o retrato de Pio IX e o velho óculo do Comendador G. Godinho:

— Ai Vicência, que ele vem cheinho de virtude! Ai que vem mesmo atochadinho dela!