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— Parece-me que Nosso Senhor Jesus Cristo não ficou descontente comigo! — murmurava eu, estendendo a colher para o doce de marmelo.

E todos os meus movimentos (até o lamber da calda) os contemplava a odiosa senhora, venerandamente, como preciosas ações de santidade.

Depois, com um suspiro:

— E outra cousa, filho... Trazes de lá algumas orações, das boas, das que te ensinassem por lá os patriarcas, os fradezinhos?...

— Trago-as de chupeta, Titi!

E numerosas, copiadas das carteiras dos santos, eficazes para todos os achaques! Tinha-as para tosses; para quando os gavetões das cômodas emperram, para vésperas de loteria...

— E terás alguma para cãibras? Que eu às vezes, de noite, filho...

— Trago uma que não falha em cãibras. Deu-ma um monge meu amigo a quem costuma aparecer o Menino Jesus...

Disse — e acendi um cigarro.

Nunca eu ousara fumar diante da Titi! Ela detestara sempre o tabaco, mais que nenhuma outra emanação do pecado. Mas agora arrastou gulosamente a sua cadeira para mim — como para um milagroso cofre, repleto dessas rezas que dominam a hostilidade das cousas, vencem toda a enfermidade, eternizam as velhas sobre a terra.

— Hás de ma dar, filho... E uma caridade que fazes!

— Oh, Titi, ora essa! — Todas! E diga, diga lá... Como vai a Titi dos seus padecimentos?

Ela deu um ai, de infinito desalento. Ia mal, ia mal... Cada dia se sentia mais fraca, como se se fosse a desfazer... Enfim, já não morria sem aquele gostinho de me ter mandado a Jerusalém visitar o Senhor; e esperava que ele lho levasse em conta, e as despesas que fizera, e o que lhe custara a separação... Mas ia mal, ia mal!

Eu desviara a face a esconder o vivo e escandaloso lampejo de júbilo que a iluminara. Depois animei-a, com generosidade. Que podia a Titi recear? Não tinha ela agora, «para se apegar», vencer as leis da decomposição natural, aquela relíquia de Nosso Senhor?...

— E outra cousa, Titi... Os amiguinhos, como vão?

Ela anunciou-me a desconsoladora nova. O melhor e mais grato, o delicioso Casimiro, recolhera à cama no domingo com as «perninhas inchadas...» Os doutores afirmavam que era uma anasarca... Ela desconfiava de uma praga que lhe rogara um galego...

— Seja como for, o santinho lá está! Tem-me feito uma falta, uma falta... Ai filho, nem tu imaginas!... O que me tem valido é o sobrinho, o Padre Negrão...

— O Negrão? — murmurei, estranho ao nome.

Ah! Eu não conhecia... Padre Negrão vivia ao pé de Torres. Nunca vinha a Lisboa, que lhe fazia nojo, com tanta relaxação... Só por ela, e para a ajudar nos seus negócios, é que o santinho condescendera em deixar a sua aldeia. E tão delicado, tão serviçal... Ai! Era uma perfeição!

— Tem-me feito uma virtude que nem calculas, filho... Só o que ele tem rezado por ti, para que Deus te protegesse nessas terras de turcos.. .E a companhia que me faz! Que todos os dias o tenho cá a jantar.. .Hoje não quis ele vir. Até me disse uma cousa muito linda:

«não quero, minha senhora, atalhar expansões». Que lá isso, falar bem, e assim cousas que tocam... Ai, não há outro... Nem imaginas, até regala... E de apetite!

Sacudi o cigarro, secado. Por que vinha aquele padre de Torres, contra os costumes domésticos, comer todos os dias o cozido da Titi? Resmunguei com autoridade:

— Lá em Jerusalém os padres e os patriarcas só vêm jantar aos domingos... Faz mais virtude.

Escurecera. A Vicência acendeu o gás no corredor; e como breve chegariam os diletos amigos, avisados pela Titi para saudar o peregrino, recolhi ao meu quarto a enfiar a sobrecasaca preta.

Aí, considerando ao espelho a face requeimada, sorri gloriosamente e pensei: — «Ah Teodorico, venceste!»

Sim, vencera! Como a Titi me tinha acolhido! Com que veneração! Com que devoção!... — E ia mal, ia mal!... Bem depressa eu sentiria, com o coração sufocado de gozo, as marteladas sobre o seu caixão. E nada podia desalojar-me do testamento da senhora Dona Patrocínio! Eu tornara-me para ela São Teodorico! A hedionda velha estava enfim convencida que deixar-me o seu ouro — era como doá-lo a Jesus e aos apóstolos e a toda a Santa Madre Igreja!

Mas a porta rangeu — a Titi entrou, com o seu antigo xale de Tonquim pelos ombros. E, caso estranho, pareceu-me ser a D. Patrocínio das Neves de outro tempo, hirta, agreste, esverdeada, odiando o amor como cousa suja, e sacudindo de si para sempre os homens que se tinham metido com saias! Com efeito! Os seus óculos, outra vez secos, reluziam, cravavam-se desconfiadamente na minha mala... Justos céus! Era a antiga Dona Patrocínio. Lá vinham as suas lívidas, aduncas mãos, cruzadas sobre o xale, arrepanhando-lhe as franjas, sôfregas de esquadrinhar a minha roupa branca! Lá se cavava aos cantos dos seus lábios sumidos, um rígido sulco de azedume!... Tremi; mas visitou-me logo uma inspiração do Senhor. Diante da mala, abri os braços, com candura:

— Pois é verdade!... Aqui tem a Titi a maleta que lá andou por Jerusalém... Aqui está, bem aberta, para todo o mundo ver que é a mala de um homem de religião! Que é o que dizia o meu amigo alemão, pessoa que sabia tudo: «lá isso, Raposo, meu santinho, quando numa viagem se pecou, e se fizeram relaxações, e se andou atrás de saias, trazem-se sempre provas na mala. Por mais que se escondam, que se deitem fora, sempre lá esquece cousa que cheire a pecado!...» Assim mo disse muitas vezes, até uma ocasião diante de um patriarca... E o patriarca aprovou. Por isso, eu cá, é malinha aberta, sem receio... Pode-se esquadrinhar, pode-se cheirar... A que cheira é a religião! Olhe, Titi, olhe... Aqui estão as ceroulinhas e as peuguinhas. Isso não pode deixar de ser, porque é pecado andar nu... Mas o resto, tudo santo! O meu rosário, o livrinho de missa, os bentinhos, tudo do melhor, tudo do Santo Sepulcro...

— Tens ali uns embrulhos! — rosnou a asquerosa senhora, estendendo um grande dedo descarnado.

Abri-os logo, com alacridade. Eram dous frascos lacrados de água do Jordão! E muito sério, muito digno, fiquei diante da senhora Dona Patrocínio com uma garrafinha do líquido divino na palma de cada mão... Então ela, com os óculos de novo embaciados, beijou penitentemente os frascos; uma pouca da baba do beijo escorreu nas minhas unhas. Depois, à porta, suspirando, já rendida:

— Olha, filho, até estou a tremer... E é destes gostinhos todos! Saiu. Eu fiquei coçando o queixo. Sim ainda havia uma circunstância que me escorraçaria do testamento da Titi! Seria aparecer diante dela, material e tangível, uma evidência das minhas relaxações... Mas como surgiria ela jamais neste lógico universo? Todas as passadas fragilidades da minha carne eram como os fumos esparsos de uma fogueira apagada, que nenhum esforço pode novamente condensar. E o meu derradeiro pecado — saboreado tão longe, no velho Egito, como chegaria jamais à notícia da Titi? Nenhuma combinação humana lograria trazer, ao Campo de Santana, as duas únicas testemunhas dele — uma luveira ocupada agora a encostar as papoulas do seu chapéu aos granitos de Ramsés, em Tebas, e um doutor encafuado numa rua escolástica, à sombra de uma vetusta universidade da Alemanha, escarafunchando o cisco histórico dos Herodes... E, a não ser essa flor de deboche e essa coluna de ciência, ninguém mais na terra conhecia os meus culpados delírios, na cidade amorosa dos Lágidas.

Demais, o terrível documento da minha junção com a sórdida Mary; a camisa de dormir aromatizada de violeta lá cobria agora em Sião uma lânguida cinta de circassiana ou os seios cor de bronze de unia núbia de Cóscoro; a comprometedora oferta «ao meu portuguesinho valente» fora despregada, queimada no braseiro; já as rendas se iriam esgarçando no serviço forte do amor; e rota, suja, gasta, ela bem depressa seria arremessada ao lixo secular de Jerusalém! Sim, nada se poderia interpor, entre a minha justa sofreguidão e a bolsa verde da Titi. Nada, a não ser a carne mesma da velha, a sua carcaça rangente, habitada por uma teimosa chama vital, que se não quisesse extinguir!... Oh fado horrível! Se a Titi obstinada, renitente, vivesse ainda quando abrissem os cravos do outro ano! E então não me contive. Atirei a alma para as alturas, gritei desesperadamente, em toda a ânsia do meu desejo: