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— Oh Santa Virgem Maria, faze que ela rebente depressa!

Nesse momento soou a grossa sineta do pátio. E foi-me grato reconhecer, depois da longa separação, as duas badaladas curtas e tímidas do nosso modesto Justino; mais grato ainda sentir, logo após, o repique majestoso do Doutor Margaride. Imediatamente a Titi escancarou a porta do meu quarto, numa penosa atarantação:

— Teodorico, filho, ouve! Tem-me estado a lembrar... Parece-me que para destapar a relíquia é melhor esperar até que se vão logo embora o Justino e o Margaride! Ai, eu sou muito amiga deles, são pessoas de muita virtude... Mas acho que para uma cerimônia destas é melhor que estejam só pessoas de igreja...

Ela, pela sua devoção, considerava-se pessoa de igreja. Eu, pela minha jornada, era quase pessoa do céu.

— Não, Titi... O Patriarca de Jerusalém recomendou-me que fosse diante de todos os amigos da casa, na capela, com velas... E mais eficaz... E olhe, diga à Vicência que me venha buscar as botas para limpar.

— Ai eu lhas dou!... São estas? Estão sujinhas, estão! Já cá te vêm, filho, já cá te vêm!

E a senhora Dona Patrocínio das Neves agarrou as botas! E a senhora Dona Patrocínio das Neves levou as botas!

Ah, estava mudada, estava bem mudada!... E ao espelho cravando no cetim da gravata uma cruz de coral de Malta, eu pensava que desde esse dia ia reinar ali, no Campo de Santana, de cima da minha santidade, e que para apressar a obra lenta da morte — talvez viesse a espancar aquela velha.

Foi-me doce, ao penetrar na sala, encontrar os diletos amigos, com casacos sérios, de pé, alargando para mim os braços extremosos. A Titi pousava no sofá, tesa, desvanecida, com cetins de festa e com jóias. E ao lado, um padre muito magro vergava a espinha com os dedos enclavinhados no peito — mostrando numa face chupada dentes afiados e famintos. Era o Negrão. Dei-lhe dous dedos, secamente:

— Estimo vê-lo por cá...

— Grandíssima honra para este seu servo! — ciciou ele, puxando os meus dedos para o coração.

E, mais vergado o dorso servil, correu a erguer o abajur do candeeiro — para que a luz me banhasse, e se pudesse ver, na madureza do meu semblante, a eficácia da minha peregrinação.

Padre Pinheiro decidiu, com um sorriso de doente:

— Mais magro!

Justino hesitou, fez estalar os dedos:

— Mais queimado!

E o Margaride, carinhosamente:

— Mais homem!

O onduloso Padre Negrão revirou-se, arqueado para a Titi como para um sacramento entre os seus molhos de luzes:

— E com um todo de inspirar respeito! Inteiramente digno de ser o sobrinho da virtuosíssima Dona Patrocínio!...

No entanto em torno tumultuavam as curiosidades amigas: «E a saudinha?» «Então, Jerusalém?» «Que tal as comidas?

Mas a Titi bateu com o leque no joelho, num receio que tão familiar alvoroço importunasse São Teodorico. E o Negrão acudiu, com um zelo melífluo:

— Método, meus senhores, método!... Assim todos à uma não se goza... É melhor deixarmos falar o nosso interessante Teodorico!...

Detestei aquele nosso; odiei aquele padre. Por que corria tanto mel no seu falar? Por que se privilegiava ele no sofá, roçando a sórdida joelheira da calça pelos castos cetins da Titi?

Mas o Doutor Margaride, abrindo a caixa de rapé, concordou que o método seria mais profícuo...

— Aqui nos sentamos todos, fazemos roda, e o nosso Teodorico conta por ordem todas as maravilhas que viu!

O esgalgado Negrão, com uma escandalosa privança, correu dentro a colher um copo de água e açúcar para me lubrificar as vias. Estendi o lenço sobre o joelho. Tossi — e comecei a esboçar a soberba jornada. Disse o luxo do Málaga; Gibraltar e o seu morro encarapuçado de nuvens; a abundância das «mesas redondas», com pudins e águas gasosas...

— Tudo à grande, à francesa! — suspirou Padre Pinheiro, com um brilho de gula no olho amortecido. — Mas naturalmente, tudo muito indigesto...

— Eu lhe digo, Padre Pinheiro... Sim, tudo à grande, tudo à francesa; mas cousas saudáveis, que não esquentavam os intestinos... Belo rosbife, belo carneiro...

— Que não valiam decerto o seu franguinho de cabidela, excelentíssima senhora! — atalhou untuosamente o Negrão, junto do ombro agudo da Titi.

Execrei aquele padre! E, remexendo a água com açúcar, decidi em meu espírito que, mal eu começasse a governar ferreamente o Campo de Santana — não mais a cabidela da minha família escorregaria na goela aduladora daquele servo de Deus.

No entanto o bom Justino, repuxando o colarinho, sorria para mim, embevecido. E como passava eu as noites em Alexandria? Havia uma assembléia, onde espairecesse? Conhecia eu alguma família considerada, com quem tomasse uma chávena de chá?...

— Eu lhe digo, Justino... Conhecia. Mas, a falar verdade, tinha repugnância em freqüentar casas de turcos... Sempre é gente que não acredita senão em Mafona!... Olhe, sabe o que fazia à noite? Depois de jantar ia a uma igrejinha cá da nossa bela religião, sem estrangeirices, onde havia sempre um santíssimo de apetite... Fazia as minhas devoções; depois ia-me encontrar com o alemão, o meu amigo, o lente, numa grande praça que dizem lá os de Alexandria que é muito melhor que o Rossio... Maior e mais abrutada talvez seja. Mas não é esta lindeza do nosso Rossio, o ladrilhinho, as árvores, a estátua, o teatro... Enfim, para meu gosto, e para um regalinho de verão prefiro o Rossio... E lá o disse aos turcos!

E fica-lhe bem ter levantado assim as cousas portuguesas! observou o Doutor Margaride, contente e rufando na tabaqueira. Direi mais... É ato de patriota... Nem de outra maneira procediam os Gamas e os Albuquerques!

— Pois é verdade... Ia-me encontrar com o alemão; e então para espairecer um bocado, porque enfim uma distração sempre e necessária quando se anda a viajar, íamos tomar um café... Que lá isso, sim! Lá café fazem-no os turcos que é uma perfeição!

— Bom cafezinho, hem? — acudiu Padre Pinheiro, chegando a cadeira para mim com interesse sôfrego. — É forte, forte? Bom aroma?

Sim, Padre Pinheiro, de consolar! ... Pois tomávamos o nosso cafezinho; depois vínhamos para o hotel, e aí no quarto, com os santos evangelhos, punhamo-nos a estudar todos aqueles divinos lugares na Judéia onde tínhamos de ir rezar... E como o alemão era lente e sabia tudo, eu era instruir-me, instruir-me!... Até ele às vezes dizia: «Você, Raposo, com estas noitadas, vai daqui um chavão...» E lá isso, o que é de cousas santas e de Cristo, sei tudo... Pois senhores, assim passávamos à luz do candeeiro até às dez onze horas... Depois, chazinho, terço e cama.

— Sim senhor, noites muito bem gozadas, noites muito frutuosas! — declarou, sorrindo para a Titi, o estimável Doutor Margaride.

— Ai, isso fez-lhe muita virtude! — suspirava a horrenda senhora. — Foi como se subisse um bocadinho ao céu... Até o que ele diz cheira bem... Cheira a santo.

Modestissimamente, baixei a pálpebra lenta.

Mas Negrão, com sinuosa perfídia, notou que mais proveitoso seria, e de maior unção repassar as almas — escutar cousas de festas, de milagres, de penitências...

— Estou seguindo o meu itinerário, senhor Padre Negrão repliquei asperamente.

— Como fez Chateaubriand; como fazem todos os famosos autores! — confirmou Margaride, aprovando.

E foi com os olhos nele, como no mais douto, que eu disse a partida de Alexandria numa tarde de tormenta; o tocante momento em que uma santa irmã de caridade (que estivera já em Lisboa e que ouvira falar da virtude da Titi), me salvara das águas salgadas um embrulho em que eu trazia terra do Egito, da que pisara a Santa Família; a nossa chegada a Jafa, que, por um prodígio apenas eu subira ao tombadilho, de chapéu alto e pensando na Titi, se coroara de raios de sol...