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— Magnífico! — exclamou o Doutor Margaride. — E diga, meu Teodorico... Não tinham consigo um sábio guia, que lhes fosse apontando as ruínas, lhes fosse comentando...

— Ora essa, Doutor Margaride! Tínhamos um grande latinista, o Padre Pote!

Remolhei o lábio. E disse as emoções da gloriosa noite em que acampáramos junto a Ramlê, com a lua no céu alumiando cousas da religião, beduínos velando de lança ao ombro, e em redor leões a rugir...

Que cena! — bradou o Doutor Margaride, erguendo-se arrebatadamente. — Que enorme cena! Não estar eu lá! Parece uma destas cousas grandiosas da Bíblia, do Eurico! É de inspirar! Eu por mim, se tal visse, não me continha!... Não me continha, fazia uma ode sublime!

O Negrão puxou a aba do casaco ao facundo magistrado:

— E melhor deixar falar o nosso Teodorico, para podermos todos saborear...

Margaride, abespinhado, franziu as sobrancelhas temerosas e mais negras que o ébano:

— Ninguém nesta sala, melhor que eu, senhor Padre Negrão, saboreia o grandioso!

E a Titi, insaciável, batendo com o leque:

— Está bem, está bem... Conta, filho, não te fartes! Olha, conta assim uma cousa que te acontecesse com Nosso Senhor, que nos faça ternura...

Todos emudeceram, reverentes. Eu então disse a marcha para Jerusalém com duas estrelas na frente a guiar-nos, como acontece sempre aos peregrinos mais finos e de boa família; as lágrimas que derramara, ao avistar, numa manhã de chuva, as muralhas de Jerusalém; e na minha visita ao Santo Sepulcro, de casaca, com Padre Pote, as palavras que balbuciara diante do túmulo, por entre soluços e no meio de acólitos — «Oh meu Jesus, oh meu Senhor, aqui estou, aqui venho da parte da Titi!...»

E a medonha senhora, sufocada:

— Que ternura que faz!... Diante do tumulozinho!

Então passei o lenço pela face excitada, e disse:

— Nessa noite recolhi ao hotel para rezar... E agora, meus senhores, há aqui um pontozinho desagradável...

E contritamente confessei que, forçado pela religião, pelo nome honrado de Raposo, e pela dignidade de Portugal tivera um conflito no hotel com um grande inglês de barbas.

— Uma bulha! — acudiu com perversidade o vil Negrão, ansioso por empanar o brilho de santidade com que eu deslumbrava a Titi. Uma bulha, na cidade de Jesus Cristo! Ora essa! Que desacato!

Com os dentes cerrados encarei o torpíssimo padre:

— Sim, senhor! Um chinfrim!... Mas fique Vossa Senhoria sabendo que o senhor Patriarca de Jerusalém me deu toda a razão; até me bateu no ombro e me disse: «Pois Teodorico, parabéns; você portou-se como um pimpão!» Que tem agora Vossa Senhoria a piar?

Negrão curvou a cabeça, onde a coroa punha uma lividez azulada de lua em tempo de peste:

— Se Sua Eminência aprovou...

— Sim, senhor! E aqui tem a Titi porque foi a bulha!... No quarto ao lado do meu havia uma inglesa, uma herege, que mal eu me punha a rezar, aí começava ela a tocar piano, e a cantar fados e tolices e cousas imorais do Barba-Azul dos teatros... Ora, imagine a Titi, estar uma pessoa a dizer com todo o fervor e de joelhos: «Oh Santa Maria do Patrocínio, faze que a minha boa Titi tenha muitos anos de vida» — e vir lá detrás do tabique uma voz de excomungada a ganir: «Sou o Barba-Azul, olé.! Ser viúvo é o meu filé!...» E de encavacar!... De modo que uma noite, desesperado, não me tenho em mim, saio ao corredor, atiro-lhe um murro à porta, e grito-lhe para dentro: «Faz favor de estar calada, que está aqui um cristão que quer rezar!...»

— E com todo o direito — afirmou o Doutor Margaride. — Você tinha por si a lei!

— Assim me disse o patriarca! Pois senhores, como ia contando, grito isto para dentro à mulher, e ia recolher muito sério ao meu quarto, quando me sai de lá o pai, um grande barbaças, de bengalório na mão... Eu fui muito prudente; cruzei os braços e, com bons modos, disse-lhe que não queria ali escândalos ao pé do túmulo de Nosso Senhor, e o que desejava era rezar em sossego... E vai, que me há de ele responder? Que se estava a... Enfim, nem eu posso repetir! Uma cousa indecente contra o túmulo de Nosso Senhor... E eu, Titi, passa-me uma oura pela cabeça, agarro-o pelo cachaço...

— E magoaste-o, filho?

— Escavaquei-o, Titi!

Todos aclamaram a minha ferocidade. Padre Pinheiro citou leis canônicas autorizando a fé a desancar a impiedade. Justino, aos pulos, celebrou esse John Bull desmantelado a sólida murraça lusitana. E eu, excitado pelos louvores como por clarins de ataque, bradava de pé, medonho:

— Lá impiedades diante de mim, não! Arrombo tudo, esborracho tudo! Em cousas de religião sou uma fera!

E aproveitei esta santa cólera para brandir, como um aviso, diante do queixo sumido do Negrão, o meu punho cabeludo e pavoroso. O macilento e esgrouviado servo de Deus encolheu. Mas nesse instante a Vicência entrava com o chá, nas pratas ricas de G. Godinho.

Então os diletos amigos, com a torrada na mão, romperam em ardentes encômios:

— Que instrutiva viagem! É como ter um curso!

— E que belo bocadinho de noite aqui se tem passado! Qual São Carlos! Isto é que é gozar!

— E como ele conta! Que fervor, que memória!...

Lentamente, o bom Justino, com a sua chávena fornecida de bolos, acercara-se da janela, como a espreitar o céu estrelado e dentre as franjas das cortinas os seus olhinhos luzidios e gulosos chamavam-me confidencialmente. Fui, trauteando o Bendito; ambos mergulhamos na sombra dos damascos; e o virtuoso tabelião, roçando o lábio pelas minhas barbas:

— Oh amiginho, e de mulheres?

Eu confiava no Justino. Segredei para dentro do seu colarinho: — De deixarem lá os miolos, Justininho!

As suas pupilas faiscaram como as de um gato em janeiro; a xícara ficou-lhe tremelicando na mão.

E eu, pensativo, repenetrando na luz:

— Sim, bonita noite... Mas não são aquelas estrelinhas santinhas que nós vimos lá no Jordão!...

Então Padre Pinheiro, tomando aos goles cautelosos a sua chalada, veio timidamente bater-me no ombro ... Lembrara-me eu, nessas santas terras, com tantas distrações, do seu frasquinho de água do Jordão? ...

— Oh Padre Pinheiro, pois está claro!... Trago tudo! E o raminho do Monte Olivete para o nosso Justino... E a fotografia para o nosso Margaride ... Tudo!

Corri ao quarto, a buscar essas doces «lembrancinhas» da Palestina. E ao regressar, sustentado pelas pontas um lenço repleto de devotas preciosidades, estaquei por trás do reposteiro ao sentir dentro o meu nome ... Suave gozo! Era o inestimável Doutor Margaride que afiançava à Titi, com sua tremenda autoridade:

— Dona Patrocínio, eu não lho quis dizer diante dele ... Mas isto agora é mais do que ter um sobrinho e um cavalheiro! Isto é Ter, de casa e pucarinho, um amigo íntimo de Nosso Senhor Jesus Cristo!...

Tossi, entrei. Mas a senhora D. Patrocínio ruminava um escrúpulo ciumento. Não lhe parecia delicado para Nosso Senhor (nem para ela), que se repartissem estas relíquias mínimas antes de lhe ser entregue a ela, como senhora e como tia, na capela, a grande relíquia...

— Porque saibam os meus amigos — anunciou ela com seu chatíssimo peito impando de satisfação — que o meu Teodorico trouxe-me uma santa relíquia, com que eu me vou apegar nas minhas aflições, e que me vai curar dos meus males!

— Bravíssimo! — gritou o impetuoso Doutor Margaride. — Com quê, Teodorico, seguiu-se o meu conselho? Esgaravataram-se esses sepulcros?... Bravíssimo! É de generoso romeiro!

— É de sobrinho, como já o não há no nosso Portugal! — acudiu o Padre Pinheiro junto ao espelho, onde estudava a língua saburrenta...

— É de filho, é de filho! — proclamava o Justino, alçado na ponta dos botins.

Então o Negrão, mostrando os dentes famintos, babujou esta cousa vilíssima:

— Resta saber, cavalheiros, de que relíquia se trata.

Tive sede, ardente sede do sangue daquele padre! Trespassei-o com dous olhares mais agudos e faiscantes do que espetos em brasa: