— Talvez Vossa Senhoria, se é um verdadeiro sacerdote, se atire de focinho para baixo a rezar, quando aparecer aquela maravilha!...
E voltei-me para a senhora Dona Patrocínio, com a impaciência de uma nobre alma ofendida que carece reparação:
— É já, Titi! Vamos ao oratório! Quero que fique tudo aqui assombrado! Foi o que disse o meu amigo alemão: «Essa relíquia, ao destapar-se, é de ficar uma família inteira azabumbada!...»
Deslumbrada, a Titi ergueu-se de mãos postas. Eu corri a prover-me de um martelo. Quando voltei, o Doutor Margaride, grave, calçava as suas luvas pretas... E atrás da senhora Dona Patrocínio, cujos cetins faziam no sobrado um ruge-ruge de vestes de prelado, penetramos no corredor onde o grande bico de gás silvava dentro do seu vidro fosco. Ao fundo a Vicência e a cozinheira espreitavam com os seus rosários na mão.
O oratório resplandecia. As velhas salvas de prata, batidas pelas chamas das velas de cera, punham no fundo do altar um brilho branco de glória. Sobre a candidez das rendas lavadas, entre a neve fresca das camélias — as túnicas dos santos, azuis e vermelhas, com o seu lustre de seda, pareciam novas, especialmente talhadas nos guarda-roupas do céu para aquela rara noite de festa... Por vezes o raio de uma auréola tremia, despedia um fulgor, como se na madeira das imagens corressem estremecimentos de júbilo. E na sua cruz de pau preto, o Cristo, riquíssimo, maciço, todo de ouro, suando ouro, sangrando ouro, reluzia preciosamente.
— Tudo com muito gosto! Que divina cena! — murmurou o Doutor Margaride, deliciado na sua paixão do grandioso.
Com piedosos cuidados coloquei o caixote na almofada de veludo; vergado, rosnei sobre ele uma Ave; depois, ergui a toalha que o cobria, e com ela no braço, tendo escarrado solenemente, falei:
— Titi, meus senhores... Eu não quis revelar ainda a relíquia que vem aqui no caixotinho, porque assim mo recomendou o senhor Patriarca de Jerusalém... Agora é que vou dizer... Mas antes de tudo, parece-me bem a pelo explicar que tudo cá nesta relíquia, papel, nastro, caixotinho, pregos, tudo é santo! Assim por exemplo os preguinhos... são da Arca de Noé... Pode ver, senhor Padre Negrão, pode apalpar! São os da Arca, até ainda enferrujados... E tudo do melhor, tudo a escorrer virtude! Além disso quero declarar diante de todos que esta relíquia pertence aqui à Titi, e que lha trago para lhe provar que em Jerusalém não pensei senão nela, e no que Nosso Senhor padeceu, e em lhe arranjar esta pechincha...
— Comigo te hás de ver sempre, filho! — tartamudeou a horrenda senhora, enlevada.
Beijei-lhe a mão, selando este pacto de que a Magistratura e a Igreja eram verídicas testemunhas. Depois, retomando o martelo:
E agora, para que cada um esteja prevenido e possa fazer as orações que mais lhe calharem, devo dizer o que é a relíquia...
Tossi, cerrei os olhos:
— É a coroa de espinhos!
Esmagada, com um rouco gemido, a Titi aluiu sobre o caixote, enlaçando-o nos braços trêmulos... Mas o Margaride coçava pensativamente o queixo austero; Justino sumira-se na profundidade dos seus colarinhos; e o ladino Negrão escancarava para mim uma bocaça negra, de onde saía assombro e indignação! Justos céus! Magistrados e sacerdotes evidenciavam uma incredulidade — terrível para a minha fortuna!
Eu tremia, com suores — quando o Padre Pinheiro, muito sério, convicto, se debruçou, apertou a mão da Titi a felicitá-la pela posição religiosa a que a elevava a posse daquela relíquia. Então, cedendo à forte autoridade litúrgica de Padre Pinheiro, todos, em fila, numa congratulação, estreitaram os dedos da babosa senhora.
Estava salvo! Rapidamente, ajoelhei à beira do caixote, cravei o formão na fenda da tampa, alcei o martelo em triunfo...
— Teodorico! Filho! — berrou a Titi, arrepiada, como se eu fosse martelar a carne viva do Senhor.
— Não há receio, Titi! Aprendi em Jerusalém a manejar estas cousinhas de Deus!...
Despregada a tábua fina, alvejou a camada de algodão. Ergui-a com terna reverência; e ante os olhos extáticos, surgiu o sacratíssimo embrulho de papel pardo, com o seu nastrinho vermelho.
— Ai que perfume! Ai! ai, que eu morro! — suspirou a Titi a esvair-se de gosto beato, com o branco do olho aparecendo por sobre o negro dos óculos.
Ergui-me, rubro de orgulho:
— É à minha querida Titi, só a ela, que compete, pela sua muita virtude, desembrulhar o pacotinho!...
Acordando do seu langor, trêmula e pálida, mas com a gravidade de um pontífice, a Titi tomou o embrulho, fez mesura aos santos, colocou-o sobre o altar; devotamente desatou o nó do nastro vermelho; depois, com o cuidado de quem teme magoar um corpo divino, foi desfazendo uma a uma as dobras do papel pardo... Uma brancura de linho apareceu... A Titi segurou-a nas pontas dos dedos, repuxou-a bruscamente — e sobre a ara, por entre os santos, em cima das camélias, aos pés da cruz — espalhou-se, com laços e rendas, a camisa de dormir da Mary!
A camisa de dormir da Mary! Em todo o seu luxo, todo o seu impudor, enxovalhada pelos meus abraços, com cada prega fedendo a pecado! A camisa de dormir da Mary! E pregado nela por um alfinete, bem evidente ao clarão das velas, o cartão com a oferta em letra encorpada: — «Ao meu Teodorico, meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozamos!» Assinado, M. M.... A camisa de dormir da Mary!
Mal sei o que ocorreu no florido oratório! Achei-me à porta, enrodilhado na cortina verde, com as pernas a vergar, num desmaio. Estalando, como achas atiradas a uma fogueira, eu sentia as acusações do Negrão bradadas contra mim junto à touca da Titi: -«Deboche! Escárnio! Camisa de prostituta! Achincalho à senhora Dona Patrocínio! Profanação do oratório!» Distingui a sua bota arrojando furiosamente para o corredor o trapo branco. Um a um, entrevi os amigos perpassarem, como longas sombras levadas por um vento de terror. As luzes das velas arquejavam, aflitas. E, ensopada em suor, entre as pregas da cortina, percebi a Titi caminhando para mim, lenta, lívida, hirta, medonha... Estacou. Os seus frios e ferozes óculos trespassaram-me. E através dos dentes cerrados cuspiu esta palavra:
— Porcalhão!
E saiu.
Rolei para o quarto, tombei no leito, esbarrondado. Um rumor de escândalo acordara o casarão severo. E a Vicência surgiu diante de mim, enfiada, com o seu avental branco na mão:
— Menino! Menino! A senhora manda dizer que saia imediatamente para o meio da rua, que o não quer nem mais um instante em casa... E diz que pode levar a sua roupa branca e todas as suas porcarias!
Despedido!
Ergui a face mole da travesseira de rendas. E a Vicência, atontada, torcendo o aventaclass="underline"
— Ai, menino! Ai, menino! se não sai já para a rua, a senhora diz que manda chamar um polícia!
Escorraçado!
Atirei os pés incertos para o soalho. Mergulhei na algibeira uma escova de dentes; topando nos móveis, procurei as chinelas que embrulhei num número da Nação. Sem reparo, agarrei dentre as malas um caixote com bandas de ferro; e em ponta de botins desci a escada da Titi, encolhido e rasteiro, como um cão tinhoso vexado da sua tinha.
Mal transpus o pátio, a Vicência, cumprindo as ordens sanhudas da Titi, bateu-me nas costas com o portão chapeado de ferro — desprezivelmente e para sempre!
Estava só na rua e na vida! À luz dos frios astros contei na palma o meu dinheiro. Tinha duas libras, dezoito tostões, um duro espanhol e cobres... E então descobri que a caixa, apanhada tontamente entre as malas, era a das relíquias menores. Complicado sarcasmo do destino! Para cobrir meu corpo desabrigado — nada mais tinha que tabuinhas aplainadas por São José, e cacos de barro do cântaro da Virgem! Meti no bolso o embrulho das chinelas; e, sem voltar os olhos turvos à casa de minha tia, marchei a pé, com o caixote às costas, na noite cheia de silêncio e de estrelas, para a Baixa, para o Hotel da Pomba de Ouro.