Ao outro dia, descorado e misérrimo à mesa da Pomba, remexia uma sombria sopa de grão e nabo — quando um cavalheiro, de colete de veludo negro, veio ocupar o talher fronteiro, junto de uma garrafa de água de Vidago, de uma caixa de pílulas e de um número da Nação. Na sua testa, imensa e arqueada como um frontão de capela, torciam-se duas veias grossas; e sob as ventas largas, enegrecidas de rapé, o bigode era um tufo curto de pêlos grisalhos, duros como cerdas de escova. O galego, ao servir-lhe o nabo e grão, rosnou com estima: «Ora, seja bem aparecidinho o Senhor Lino!»
Ao cozido este cavalheiro, abandonando a Nação onde percorrera miudamente os anúncios, pousou em mim os olhos amarelentos de bílis e baços, e observou que estávamos gozando desde os Reis um tempinho de apetite...
— De rosas — murmurei com reserva.
O Senhor Lino entalou mais o guardanapo para dentro do colarinho lasso:
— E Vossa Senhoria, se não é curiosidade, vem das provindas do norte?
Passei vagarosamente a mão pelos cabelos:
— Não, senhor... Venho de Jerusalém!
De assombrado o Senhor Uno perdeu a garfada de arroz. E depois de ter ruminado mudamente a sua emoção, confessou que lhe interessavam muito todos esses lugares santos porque tinha religião, graças a Deus! E tinha um emprego, graças também a Deus, na Câmara Patriarcal...
— Ah, na Câmara Patriarcal! — acudi eu. — Sim, muito respeitável... Eu conheci muito um patriarca... Conheci muito o senhor Patriarca de Jerusalém. Cavalheiro muito santo, muito catita... Até nos ficamos tratando de tu!
O Senhor Lino ofereceu-me da sua água de Vidago — e conversamos das terras da Escritura.
— Que tal Jerusalém, como lojas?...
— Como lojas?... Lojas de modas?
— Não, não! — atalhou o Senhor Lino. Quero dizer lojas de santidade, de reliquiarias, de cousinhas divinas...
— Sim... Menos mau. Há o Damiani na Via-Dolorosa que tem tudo, até ossos de mártires... Mas o melhor é cada um esquadrinhar, escavar... Eu nessas cousas trouxe maravilhas!
Uma chama de singular cobiça avivou as pupilas amareladas do Senhor Lino, da Câmara Patriarcal. E de repente, com uma decisão de inspirado:
— Andrezinho, a pinguinha de Porto... Hoje é bródio!
Quando o galego pousou a garrafa, com a sua data traçada à mão num velho rótulo de papel almaço — o Senhor Lio ofertou-me um cálice cheio.
— A sua!
— Com a ajuda do Senhor!... À sua!
Por cortesia, rilhado o queijo, convidei aquele homem que graças a Deus tinha religião, a entrar no meu quarto e admirar as fotografias de Jerusalém. Ele aceitou, com alvoroço; mas, apenas transpôs a porta, correu sem etiqueta e gulosamente ao meu leito — onde jaziam espalhadas algumas das relíquias que eu desencaixotara essa manhã.
— O cavalheiro aprecia? — indaguei, desenrolando uma vista do Monte Olivete, e pensando em lhe ofertar um rosário.
Ele revirava em silêncio, nas mãos gordas e de unhas roídas, um frasco de água do Jordão. Cheirou-o, pesou-o, chocalhou-o. Depois, muito sério, com as veias entumecidas na vastíssima fronte:
— Tem atestado?
Estendi-lhe a certidão do frade franciscano, garantindo como autêntica e sem mistura a água do rio batismal. Ele saboreou o venerando papel. E entusiasmado:
— Dou quinze tostões pelo frasquinho!
Foi, no meu intelecto de bacharel, como se uma janela se abrisse e por ela entrasse o sol! Vi inesperadamente, ao seu clarão forte, a natureza real dessas medalhas, bentinhos, águas, lascas, pedrinhas, palhas, que eu considerara até então um lixo eclesiástico esquecido pela vassoura da filosofia! As relíquias eram valores! Tinham a qualidade onipotente de valores! Dava-se um caco de barro — e recebia-se uma rodela de ouro!... E, iluminado, comecei insensivelmente a sorrir, com as mãos encostadas à mesa como um balcão de armazém:
— Quinze tostões por água pura do Jordão! Boa! Em pouca conta tem Vossa Senhoria o nosso São João Batista... Quinze tostões! Chega a ser impiedade!... Vossa Senhoria imagina que a água do Jordão é como a água do Arsenal? Ora essa!... Três mil-réis recusei eu a um padre de Santa Justa, esta manhã, aí, ao pé dessa cama...
Ele fez saltar o frasco na palma gorda, considerou, calculou:
— Dou quatro mil-réis.
Vá lá, por sermos companheiros na Pomba!
E quando o Senhor Lino saiu do meu quarto, com o frasco do Jordão embrulhado na Nação, eu, Teodorico Raposo, achava-me fatalmente, providencialmente, estabelecido vendilhão de relíquias!
Delas comi; delas fumei; delas amei, durante dous meses, quieto e aprazido na Pomba de Ouro. Quase sempre o Senhor Lino surdia de manhã no meu quarto, de chinelos, escolhia um caco do cântaro da Virgem ou uma palhinha do presépio, empacotava na Nação, largava a pecúnia e abalava assobiando o De Profundis. E evidentemente o digno homem revendia as minhas preciosidades com gordo provento — porque bem depressa, sobre o seu colete de veludo preto, rebrilhou uma corrente de ouro.
No entanto, muito hábil e fino, eu não tentara (nem com súplicas, nem com explicações, nem com patrocínios) amansar as beatas iras da Titi e repenetrar na sua estima. Contentava-me em ir à Igreja de Santana, todo de negro, com um ripanço. Não encontrava a Titi, que tinha agora de manhã no oratório missa do torpíssimo Negrão. Mas lá me prostrava, batendo contritamente no peito suspirando para o sacrário — certo que, pelo Melchior, sacristão, as novas da minha devoção inalterável chegariam à hedionda senhora.
Muito manhoso, também não procurara os amigos da Titi — que deviam prudentemente partilhar as paixões da sua alma para lograrem os favores do seu testamento; assim poupava embaraços angustiosos a esses beneméritos da Magistratura e da Igreja. Sempre que encontrava Padre Pinheiro ou Doutor Margaride, cruzava as mãos dentro das mangas, baixava os olhos, evidencianlo humildade e compunção. E este retraimento era decerto grato aos amigos, porque uma noite, topando o Justino perto da casa da Benta Bexigosa, o digno homem segredou junto da minha barba, depois de se ter assegurado da solidão da rua.
— Ande-me assim, amiguinho!... Tudo se há de arranjar... Que ela por ora está uma fera... Oh diabo aí vem gente!
E abalou.
No entanto, por intermédio do Lino, eu vendilhava relíquias. Bem depressa, porém recordado dos compêndios de Economia Política, refleti, que os meus proventos engordariam se, eliminando o Lino, eu mesmo me dirigisse ousadamente ao consumidor pio.
Escrevi então a fidalgas, servas do Senhor dos Passos da Graça, cartas com listas e preços de relíquias. Mandei propostas de ossos de mártires a igrejas de província. Paguei copinhos de aguardente a sacristães, para que eles segredassem a velhas com achaques -«Para cousas de santidade não há como o senhor Doutor Raposo que vem fresquinho de Jerusalém!...» E bafejou-me a sorte. A minha especialidade foi a água do Jordão, em frascos de zinco, lacrados e carimbados com um coração em chamas; vendi desta água para batizados, para comidas, para banhos; e durante um momento houve um outro Jordão, mais caudaloso e límpido que o da Palestina, correndo por Lisboa, com a sua nascente num quarto da Pomba de Ouro. Imaginativo, introduzi novidades rendosas e poéticas; lancei no comércio com eficácia «o pedacinho da bilha com que Nossa Senhora ia à fonte»; fui eu que acreditei na piedade nacional «uma das ferraduras do burrinho em que fugira a Santa Família». Agora quando o Lino de chinelos batia à porta do meu quarto, onde as medas de palhinhas do presépio alternavam com as palhas de tabuinhas de São José, eu entreabria uma fenda avara e ciciava:
— Foi-se... Esgotadinho!... Só para a semana... Vem-me aí um caixotinho da Terra Santa...
As veias frontais do capacíssimo homem inchavam, numa indignação de intermediário espoliado.
Todas as minhas relíquias eram acolhidas com o mais forte fervor — porque provinham «do Raposo, fresquinho de Jerusalém». Os outros reliquistas não tinham esta esplêndida garantia de uma jornada à Terra Santa. Só eu, Raposo, percorrera esse vastíssimo depósito de sanidade. Só eu de resto sabia lançar na folha sebácea de papel que autenticava a relíquia — a firma floreada do senhor Patriarca de Jerusalém.