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Mas bem cedo reconheci que esta profusão de reliquilharia saturara a devoção do meu pais! Atochado, empanturrado de relíquias, este católico Portugal já não tinha capacidade — nem para receber um desses raminhos secos de flores de Nazaré, que eu cedia a cinco tostões!

Inquieto, baixei melancolicamente os preços. Prodigalizei, no Diário de Notícias, anúncios tentadores — «Preciosidades da Terra Santa, em conto, na tabacaria Rego, se diz...» Muitas manhãs, com um casacão eclesiástico e um cachenê de seda disfarçando a minha barba, assaltei à porta das igrejas velhas beatas; oferecia pedaços da túnica da Virgem Maria, cordéis das sandálias de São Pedro; e rosnava com ânsia, roçando-me pelos manteletes e pelas toucas: «Baratinhos, minha senhora, baratinhos... Excelentes para catarros!...»

Já devia uma carregada conta na Pomba de Ouro; descia as escadas sorrateiramente, para não encontrar o patrão; chamava com sabujice ao galego — «meu André, meu catitinha...»

E punha toda a minha esperança num renovamento da fé! A menor notícia de festa de igreja me regozijava como um acréscimo de devoção no povo. Odiava ferozmente os republicanos e os filósofos que abalam o catolicismo — e portanto diminuem o valor das relíquias que ele instituiu. Escrevi artigos para a Nação, em que bradava: «Se vos não apegais aos ossos dos mártires, como quereis que prospere este país?» No café do Montanha dava murros sobre mesas: «E necessário religião, caramba! Sem religião nem o bifezinho sabe!» Em casa da Benta Bexigosa ameaçava as raparigas, se elas não usassem os seus bentinhos e os seus escapulários, de não voltar ali, de ir à casa da D. Adelaide!... A minha inquietação pelo «pão de cada dia» foi mesmo tão áspera, que de novo solicitei a intervenção do Lino — homem de vastas relações eclesiásticas, parente de capelães de convento. Outra vez lhe mostrei o meu leito juncado de relíquias. Outra vez lhe disse, esfregando as mãos: «Vamos a mais negócio, amiguinho! Aqui tenho sortimento fresco, chegadinho de Sião!»

Mas, do digno homem da Câmara Patriarcal, só recolhi recriminações acerbas...

— Essa léria não pega, senhor! — gritou ele, com as veias a estalar de cólera na fronte esbraseada. — Foi Vossa Senhoria que estragou o comércio!... Está o mercado abarrotado, já não há maneira de vender nem um cueirinho do Menino Jesus, uma relíquia que se vendia tão bem! O seu negócio com as ferraduras é perfeitamente indecente... Perfeitamente indecente! É o que me dizia noutro dia um capelão, primo meu: «São ferraduras de mais ara um país tão pequeno!...» Quatorze ferraduras, senhor! É abusar! Sabe Vossa Senhoria quantos pregos, dos que pregaram Cristo na cruz, Vossa Senhoria tem impingido, todos com documentos? Setenta e cinco, senhor!... Não lhe digo mais nada... Setenta e cinco!

E saiu, atirando a porta com furor, deixando-me aniquilado.

Venturosamente, nessa noite, encontrei o Rinchão em casa da Benta Bexigosa, e recebi dele uma considerável encomenda de relíquias. O Rinchão ia desposar uma menina Nogueira, filha da Senhora Nogueira, rica beata de Beja e rica proprietária de porcos; e ele «queria dar um presente catita à carola da velha, tudo cousinhas da cartilha e do Santo Sepulcro». Arranjei-lhe um lindo cofre de relíquias (aí coloquei o meu septuagésimo sexto prego), ornado das minhas graciosas flores secas de Galiléia. Com a generosa pecúnia que me deu o Rinchão, paguei à Pomba de Ouro; e tomei prudentemente um quarto na casa de hóspedes do Pita, à Travessa da Palha.

Assim diminuía a minha prosperidade. O meu quarto agora era nos altos, no quinto andar, com um catre de ferro, e uma poltrona vetusta cujo miolo de estopa fétida rompia entre a chita esgarçada. Como único ornato pendia sobre a cômoda, num caixilho enfeitado de borlas, uma litografia de Cristo crucificado, a cores; nuvens negras de tormenta rolavam-lhe aos pés; e os seus olhos claros, arregalados, seguiam e miravam todos os meus atos, os mais ínfimos, mesmo o delicado aparar dos calos.

Havia uma semana que, assim instalado, farejava Lisboa à busca do pão incerto, com botas a que se começava a romper a sola, quando uma manhã o André da Pomba de Ouro me trouxe uma carta que lá fora deixada na véspera, com a marca «urgente». O papel linha tarja preta; o sinete era de lacre negro. Abri, tremendo. E vi a assinatura do Justino.

«Meu querido amigo. E meu penoso dever, que cumpro com lágrimas, participar-lhe que sua respeitável tia e minha senhora inesperadamente sucumbiu...»

Caramba! A velha rebentara!

Ansiosamente saltei através das linhas, tropeçando sobre os detalhes — «congestão dos pulmões... Sacramentos recebidos... Todos a chorar... O nosso Negrão!...» E empalidecendo, num suor que me alagava, avistei, ao fim da lauda, a nova medonha; «do testamento da virtuosa senhora, consta que deixa a seu sobrinho Teodorico o óculo que se acha pendurado na sala de jantar...»

Deserdado!

Agarrei o chapéu, corri aos encontrões pelas ruas até ao cartório do Justino, a São Paulo. Achei-o à banca, com uma gravata de luto e a pena atrás da orelha, comendo fatias de vitela sobre um velho Diário de Notícias.

— Com que, o óculo?... — balbuciei, esfalfado, arrimado à esquina de uma estante.

— É verdade. O óculo! — murmurou ele, com a boca atulhada.

Fui tombar, quase desmaiado, sobre o canapé de couro. Ele ofereceu-me vinho de Bucelas. Bebi um cálice. E passando a mão trêmula sobre a face lívida:

— Então dize lá, conta lá tudo, Justininho...

O Justino suspirou. A santa senhora, coitadinha, deixara-lhe duas inscrições de conto... E, de resto, dispersara no seu testamento as riquezas de G. Godinho, do modo mais incoerente e mais perverso. O prédio do Campo de Santana e quarenta contos de inscrições, para o Senhor dos Passos da Graça. As ações da Companhia do Gás, as melhores pratas, a casa de Linda-a-Pastora para o Casimiro, que já se não mexia, moribundo. Padre Pinheiro recebia um prédio na Rua do Arsenal. A deliciosa quinta do Mosteiro, com o seu pitoresco portão de entrada, onde se viam ainda as armas dos condes de Lindoso, as inscrições de Crédito Público, a mobília do Campo de Santana, o Cristo de ouro — para o Padre Negrão. Três contos de réis e o relógio, para o Margaride. A Vicência tivera as roupas de cama. Eu — o óculo!

— Para ver o resto de longe! — considerou filosoficamente o Justino, dando estalinhos nos dedos.

Recolhi à Travessa da Palha. E durante horas, em chinelas, com os olhos chamejantes, revolvi o desejo desesperado de ultrajar o cadáver da Titi — cuspindo-lhe sobre o carão lívido, esfuracando, com uma bengala, a podridão do seu ventre. Chamei contra ela todas as cóleras da natureza. Pedi às árvores que recusassem sombra à sua sepultura! Pedi aos ventos que sobre ela soprassem todos os lixos da terra! Invoquei o demônio: «Dou-te a minha alma se torturares incansavelmente a velha!» Gritei com os braços para as alturas: «Deus, se tens um céu, escorraça-a de lá!» Planejei quebrar a pedradas o mausoléu que lhe erguessem... E decidi escrever comunicados nos jornais, contando que ela se prostituía a um galego, todas as tardes, no sótão, de óculos negros e em fralda!

Esfalfado de a odiar — adormeci densamente.

Foi o Pita que me acordou, ao anoitecer, entrando com um longo embrulho. Era o óculo. Mandava-mo o Justino, com estas palavras amigas: «Aí vai a modesta herança!»

Acendi uma vela. Com áspera amargura tomei o óculo, abri a vidraça — e olhei por ele, como da borda de uma nau que vai perdida nas águas. Sim, muito sagazmente o afirmara Justino, a asquerosa Patrocínio deixava-me o óculo com rancoroso sarcasmo — para eu ver através dele o resto da herança! E eu via, apesar da escura noite, nitidamente via o Senhor dos Passos, sumindo os maços de inscrições dentro da sua túnica roxa, o Casimiro, tocando com as mãos moribundas os lavores das pratas, espalhadas sobre o seu leito; e o vilíssimo Negrão, de casaco de cotim e galochas, passeando regalado à beira da água, sob os olmos do Mosteiro! E eu ali, com o óculo!