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— Por que é que o cavalheiro não põe o guarda-chuva ali a um canto? — disse-me ela, rindo.

O brilho picante dos seus dentinhos miúdos fez desabrochar, dentro em mim, uma flor de madrigal.

— É para não me tirar daqui de ao pé da menina nem um instantinho que seja.

Ela fez-me uma cócega lenta no pescoço. Eu, aboborado de gozo bebi o resto do Madeira que ela deixara no cálice.

A Ernestina, poética, e cantando o fado, aninhou-se nos joelhos do Rinchão. Então a Adélia, revirando-se languidamente, puxou-me a face — e os meus lábios encontraram os seus no beijo mais sério, mais sentido, mais profundo que até aí abalara o meu ser.

Nesse doce instante, um relógio medonho, com o mostrador fingindo uma face de lua, e que parecia espreitar-me de sobre o mármore de uma mesa de mogno, dentre dous vasos sem flores, começou a dar dez horas, fanhoso, irônico, pachorrento.

Jesus! Era a hora do chá em casa da Titi! Com que terror eu trepei, esbaforido, sem mesmo abrir o guarda-chuva, as vielas escuras e infindáveis que levam ao Campo de Santana! Em casa, nem tirei as botas enlameadas. Enfiei pela sala; e vi logo, lá ao fundo, no sofá de balbuciei:

— Titi...

Mas já ela gritava, esverdinhada de cólera, sacudindo os punhos:

— Relaxações em minha casa não admito! Quem quiser viver aqui há de estar às horas que eu marco! Lá deboches e porcarias, não, enquanto eu for viva! E quem não lhe agradar, rua!

Sob a rajada estridente da indignação da senhora D. Patrocínio, Padre Pinheiro e o tabelião Justiço tinham dobrado a cabeça, embaçados. o Doutor Margaride, para apreciar conscienciosamente a minha culpa, puxou o seu pesado relógio de ouro. E foi o bom Casimiro que interveio, como sacerdote, como procurador, influente e suave.

— D. Patrocínio tem razão, tem muita razão em querer ordem em casa... Mas talvez o nosso Teodorico se tivesse demorado um pouco mais no Martinho, a ouvir falar de estudos, de compêndios...

Exclamei amargamente:

— Nem isso, Padre Casimiro! Nem no Martinho estive! Sabe onde estive? No convento da Encarnação! É verdade, encontrei um condiscípulo meu, que ia lá buscar a irmã. Hoje era festa, a irmã tinha ido passar o dia com uma tia, uma comendadeira... Estivermos à espera, a passear no pátio... A irmã vai casar, ele andou a contar-me do noivo, e do enxoval, e do apaixonada que ela está... Eu morto por me safar, mas com cerimônia do rapaz, que sobrinho do Barão de Alconchel... E ele zás, zás, a falar da irmã, e do namoro, e das cartas...

A tia Patrocínio uivou de furor.

— Olha que conversa! Que porcaria de conversa! Que indecente conversa para o pátio de uma casa de religião! Cala-te, alma perdida, que até devias ter vergonha!... E fique entendendo! Para outra vez que venha a estas horas, não me entra em casa! Fica na rua, como um cão..

Então o Doutor Margaride estendeu a mão pacificadora e solene:

— Está tudo explicado! O nosso Teodorico foi imprudente, mas o sítio onde esteve é respeitável... E eu conheço o Barão de Alconchel. É um cavalheiro da maior circunspecção, e um dos mais abastados do Alentejo... Talvez mesmo um dos mais ricos proprietários de Portugal... o mais rico, direi!... Mesmo lá fora não haverá fortuna territorial que lhe exceda. Nem que se lhe compare!... Só em porcos! Só em cortiça! Centenares de contos! Milhões!

Erguera-se; o seu vozeirão empolado rolava serras de ouro. E o bom Casimiro murmurava, ao meu lado, com brandura:

— Tome o seu chazinho, Teodorico, vá tomando o seu chazinho. E creia que a tia não deseja senão o seu bem...

Puxei, com a mão a tremer, a minha chávena de chá; e, remexendo desfalecidamente o fundo de açúcar, pensava em abandonar para sempre a casa daquela velha medonha, que assim me ultrajava diante da Magistratura e da Igreja, sem consideração pela barba que me começava a nascer, forte, respeitável e negra.

Mas, aos domingos, o chá era servido nas pratas do Comendador G. Godinho. Eu via-as, maciças e resplandecentes, diante de mim; o grande bule, terminando em bico de pato; o açucareiro cuja asa tinha a forma de uma cobra assanhada; e o paliteiro gentil, em figura de macho trotando sob os seus alforjes. E tudo pertença à Titi. Que rica que era a Titi! Era necessário ser bom, agradar sempre A Titi!

Por isso, mais tarde, quando ela penetrou no oratório para cumprir o terço, já eu lá estava, de rojos, gemendo, martelando o peito, e suplicando ao Cristo de ouro que me perdoasse ter ofendido a Titi.

Um dia enfim cheguei a Lisboa, com as minhas cartas de doutor metidas num canudo de lata. A Titi examinou-as reverente, achando um sabor eclesiástico As linhas em latim, às paramentosas fitas vermelhas, e ao selo dentro do seu relicário.

— Está bom, — disse ela — estás doutor. A Deus Nosso Senhor o deves; vê não lhe faltes...

Corri logo ao oratório, com o canudo na mão, agradecer ao Cristo de ouro o meu glorioso grau de bacharel.

Na manhã seguinte, estando ao espelho, a espontar a barba que, agora, tinha cerrada e negra, o Padre Casimiro entrou-me pelo quarto, risonho e a esfregar as mãos.

— Boa nova vos trago aqui, senhor Doutor Teodorico!

E depois de me acaridar, segundo o seu afetuoso costume, com palmadinhas doces nos rins, o santo procurador revelou-me que a Titi, satisfeita comigo, decidira comprar-me um cavalo para eu dar honestos passeios, e espairecer por Lisboa.

— Um cavalo! Oh, Padre Casimiro!

Um cavalo. E alem disso, não querendo que seu sobrinho, já barbado, já letrado, sofresse um vexame, por lhe faltar às vezes um troco para deitar na salva de Nossa Senhora do Rosário, a Titi estabelecia-me uma mesada de três moedas.

Abracei com calor o Padre Casimiro. E desejei saber se a amorável intenção da Titi era que eu não tivesse outra ocupação, além de cavalgar por Lisboa, e lançar pratinhas na salva de Nossa Senhora.

— Olhe, Teodorico, eu parece-me que a Titi não quer que você tenha outro mister, senão temer a Deus... o que lhe digo é que o amigo vai passá-la boa e regalada... E agora, ande, vá-lhe lá dentro agradecer, e diga-lhe uma cousinha mimosa.

Na saleta, onde brilhavam pelas paredes os feitos piedosos do patriarca São José, a Titi, sentada a um canto do sofá de riscadinho, fazia meia, com um xale de Tonquim pelos ombros.

— Titi — murmurei eu encolhido — venho aqui agradecer...

— Está bom, vai com Deus.

Então, devotamente, beijei-lhe a franja do xale. A Titi gostou. Eu fui com Deus.

Começou daí, farta e regalada, a minha existência de sobrinho da senhora D. Patrocínio das Neves. As oito horas, pontualmente, vestido de preto, ia com a Titi à Igreja de Santana, ouvir a missa do Padre Pinheiro. Depois do almoço, tendo pedido licença à Titi, e rezadas no oratório três Gloria Patri contra as tentações, saía a cavalo, de calça clara. Quase sempre a Titi me dava alguma incumbência beata: passar em São Domingos, e dizer a oração pelos três santos mártires do Japão; entrar na Conceição Velha, e fazer o ato de desagravo pelo Sagrado Coração de Jesus...

E eu receava tanto desagradar-lhe, que nunca deixava de dar estes ternos recados, que ela mandava à casa do Senhor.

Mas era este o momento desagradável do meu dia: às vezes, ao sair, sorrateiro, do portão da igreja, topava com algum condiscípulo republicano, dos que me acompanhavam em Coimbra, nas tardes de procissão, chasqueando o Senhor da Cana-Verde.

— Oh, Raposão! pois tu agora...

Eu negava, vexado:

— Ora essa! Não me faltava mais nada! Sou mesmo lá de carolices... Qual! Entrei aqui por causa de uma rapariga... Adeus, tenho a égua à espera.

Montava, e de luva preta, a perna bem colada à sela, um botãozinho de camélia no peito, ia caracolando, em ócio e luxo, até ao Largo do Loreto. Outras vezes deixava a égua no Arco do Bandeira, e gozava uma manhã regalada no bilhar do Montanha.

Antes do jantar, em chinelas, no oratório com a Titi, eu fazia a jaculatória a São José, aio de Jesus, custódio de Maria e amorosíssimo patriarca. À mesa. adornada apenas por compoteiras de doce de calda em torno de uma travessa de aletria. eu contava à Titi o meu passeio, as igrejas em que me deleitara, e quais os altares alumiados. A Vicência escutava com devoção, perfilada no seu lugar costumado, entre as duas janelas, onde um retrato do nosso santo padre Pio IX enchia a tira de parede verde, tendo por baixo, pendente de um cordão, um velho óculo de alcance, relíquia do Comendador G. Godinho. Depois do café a Titi, lentamente, cruzava os braços; e o seu carão sumia-se, dormente e pesado, na sombra do lenço roxo.