E ainda eu não levantara os olhos — já tudo desaparecera! Então, transportado como perante uma evidência do sobrenatural, atirei as mãos ao céu e bradei:
— Oh meu Senhor Jesus, Deus e filho de Deus, que te encarnaste e padeceste por nós...
Mas emudeci... Aquela inefável voz ressoava ainda em minha alma, mostrando-me a inutilidade da hipocrisia. Consultei a minha consciência, que reentrara dentro de mim — e bem certo de não acreditar que Jesus fosse filho de Deus e de uma mulher casada de Galiléia (como Hércules era filho de Júpiter e de uma mulher casada da Argólida) — cuspi dos meus lábios, tornados para sempre verdadeiros, o resto inútil da oração.
Ao outro dia, casualmente, entrei no jardim de São Pedro de Alcântara — sítio que não pisara desde os meus anos de latim. E mal dera alguns passos, entre os canteiros, encontrei o meu antigo Crispim, filho de Teles Crispim & Cia., com fábrica de fiação à Pampulha — camarada que não avistara desde o meu grau de bacharel. Era este o louro Crispim, que outrora no colégio dos Isidoros me dava beijos vorazes no corredor, e me escrevia à noite bilhetinhos prometendo-me caixas com penas de aço. Crispim velho morrera; Teles, rico e obeso, passara a Visconde de São Teles; e este meu Crispim agora era a firma.
Trocado um ruidoso abraço, Crispim & Cia. notou pensativamente que eu estava «muitíssimo feio». Depois invejou a minha jornada à Terra Santa (que ele soubera pelo Jornal das Novidades) e aludiu, com amigável regozijo, à «grossa maquia que me devia ter deixado a senhora D. Patrocínio das Neves...»
Amargamente mostrei-lhe as minhas botas cambadas. Paramos num banco, junto de uma trepadeira de rosas; e aí, no silêncio e no perfume, narrei a camisa funesta da Mary, a relíquia no seu embrulho, o desastre no oratório, o óculo, o meu quarto miserável na Travessa da Palha...
— De modo, Crispinzinho da minha alma, que aqui me encontro sem pão!
Crispim & Cia., impressionado, torcendo os bigodes louros, murmurou que em Portugal, graças à Carta e à Religião, todo o mundo tinha uma fatia de pão; o que a alguns faltava era o queijo.
— Ora o queijo dou-to eu, meu velho! — ajuntou alegremente a firma, atirando-me uma palmada ao joelho. — Um dos empregados do escritório lá na Pampulha começou a fazer versos, a meter-se com atrizes... E muito republicano, achincalhando as cousas santas... Enfim, um horror, desembaracei-me dele! Ora, tu tinhas boa letra. Uma conta de somar sempre saberás fazer... lá está a carteira do homem, vai lá, são vinte e cinco mil-réis; sempre é o queijo!...
Com duas lágrimas a tremerem-me nas pestanas abracei a firma. Crispim & Cia. murmurou outra vez, com uma careta de quem sente um gosto azedo:
— Irra! Que estás muitíssimo feio!
Comecei então a servir com desvelo a fábrica de fiação à Pampulha; e todos os dias à carteira, com mangas de lustrina, copiava cartas na minha letra de belas curvas e alinhava algarismos num vasto livro de Caixa... A firma ensinara-me a «regra de três», e outras habilidades. E, como de sementes trazidas por um vento casual a um torrão desaproveitado, rompem inesperadamente plantas úteis que prosperam — das lições da firma brotaram, na minha inculta natureza de bacharel em leis, aptidões consideráveis para o negócio da fiação. Já a firma dizia, compenetrada, na assembléia do Carmo:
— Lá o meu Raposo, apesar de Coimbra e dos compêndios que lhe meteram no caco, tem dedo para as cousas sérias!
Ora, num sábado de agosto, à tarde, quando eu ia fechar o livro de Caixa, Crispim & Cia. parou diante da minha carteira, risonho e acendendo o charuto:
— Ouve lá, ó Raposão, tu a que missa costumas ir?
Silenciosamente, tirei a minha manga de lustrina.
— Eu pergunto isto — ajuntou logo a firma — porque amanhã vou com minha irmã à Outra Banda, a uma quinta nossa, a Ribeira. Ora, se tu não estás muito apegado a outra missa, venhas à de Santos, às nove; íamos almoçar ao Hotel Tentral, e embarcávamos de lá para Cacilhas. Estou com vontade que conheças minha irmã!...
Crispim & Cia. era um cavalheiro religioso que considerava a religião indispensável à sua saúde, à sua prosperidade comercial, e à boa ordem do país. Visitava com sinceridade o Senhor dos Passos da Graça, e pertencia à Irmandade de São José. O empregado, cuja carteira eu ocupava, tornara-se-lhe sobretudo intolerável por escrever no Futuro, gazeta republicana, folhetins louvando Renan e ultrajando a eucaristia. Eu ia dizer a Crispim & Cia. que estava tão apegado à missa da Conceição-Nova, que outra não me podia saber bem... Mas lembrei a voz austera e salutar da Travessa da Palha! Recalquei a mentira beata que já me sujava os lábios — e disse, muito pálido e muito firme:
— Olha, Crispim, eu nunca vou à missa... Tudo isso são patranhas... Eu não posso acreditar que o corpo de Deus esteja todos os domingos num pedaço de hóstia feita de farinha. Deus não tem corpo, nunca teve.. Tudo isso são idolatrias, são carolices... Digo-te isto rasgadamente.. Podes fazer agora comigo o que quiseres. Paciência!
A firma considerou-me um momento mordendo o beiço:
— Pois olha, Raposo, calha-me essa franqueza!... Eu gosto de gente lisa... O outro velhaco, que estava aí a essa carteira, diante de mim dizia: «Grande homem, o Papa!» E depois ia para os botequins e punha o Santo Padre de rastos... Pois acabou-se! Não tens religião, mas tens cavalheirismo... Em todo o caso, às dez no Central para o almocinho, e à vela depois para a Ribeira!
Assim eu conheci a irmã da firma. Chamava-se D. Jesuína; tinha trinta e dous anos e era zarolha. Mas, desde esse domingo de rio e de campo, a riqueza dos seus cabelos ruivos como os de Eva, o seu peito sólido e suculento, a sua pele cor de maçã madura, o riso são dos seus dentes claros — tornavam-me pensativo, quando à tardinha, com o meu charuto, eu recolhia à Baixa pelo Aterro, olhando os mastros das faluas...
Fora educada nas Salésias; sabia geografia e todos os rios da China; sabia história e todos os reis de França; e chamava-me Teodorico-Coração-de-Leão, por eu ter ido à Palestina. Aos domingos agora eu jantava na Pampulha; D. Jesuína fazia um prato de ovos queimados; e o seu olho vesgo pousava, com incessante agrado, na minha face potente e barbuda de Raposão. Uma tarde ao café, Crispim & Cia. louvou a família real, a sua moderação constitucional, a graça caridosa da rainha. Depois descemos ao jardim; e andando D. Jesuína a regar, e eu ao lado enrolando um cigarro, suspirei e murmurei junto ao seu ombro: «Vossa Excelência, D. Jesuína, é que estava a calhar para rainha, se cá o Raposinho fosse rei!» Ela, corando, deu-me a última rosa do verão.
Em véspera de Natal, Crispim & Cia. chegou à minha carteira, pousou galhofeiramente o chapéu sobre a página do livro de Caixa que eu enegrecia de cifras, e cruzando os braços, com um riso de lealdade e estima: