— Rebento-o! — gritei eu, irresistivelmente, com os olhos em chamas, esmurrando o mármore da mesa.
O moço triste, lá ao fundo, ergueu a face de cima do seu capilé. E o Doutor Margaride reprovou com severidade a minha violência.
— Essa expressão é imprópria de um cavalheiro, e de um moço comedido. Em geral não se rebenta ninguém... E além disso o seu rival não é outro, Teodorico, senão Nosso Senhor Jesus Cristo!
Nosso Senhor Jesus Cristo? E só compreendi, quando o esclarecido jurisconsulto, já mais calmo, me revelou que a Titi, ainda no último ano da minha formatura, tencionava deixar a sua fortuna, terras e prédios, a irmandades da sua simpatia e a padres da sua devoção.
— Estou perdido! — murmurei.
Os meus olhos, casualmente, encontraram, lá ao fundo, o moço triste diante do seu capilé. E pareceu-me que ele se assemelhava a mim como um irmão, que era eu próprio, Teodorico, já deserdado, sórdido, com as botas cambadas, vindo ali ruminar as dores da minha vida, à noite, diante de um capilé.
Mas o Doutor Margaride acabara a torrada. E estendendo regaladamente as pernas, consolou-me, de palito na boca, afável e perspicaz.
— Nem tudo está perdido, Teodorico. Não me parece que esteja tudo perdido... E possível que a senhora sua tia tenha mudado de idéia... Você é bem comportado, amima-a, lê-lhe o jornal, reza o terço com ela... Tudo isto influi. Que é necessário dizê-lo, o rival é forte!
Eu gemi:
— E de arromba!
— E forte. E devo acrescentar, digno de todo o respeito... Jesus Cristo padeceu por nós, é religião do Estado, não há senão curvar a cabeça... Olhe, quer você a minha opinião? Pois aí a tem, franca e sem rebuço, para lhe servir de guia... Você vem a herdar tudo, se D. Patrocínio, sua tia e minha senhora, se convencer que deixar-lhe a fortuna a você é como deixá-la à Santa Madre Igreja...
O magistrado pagou o chá, nobremente. Depois, na rua, ia abafado no seu paletó, ainda me disse baixinho:
— Com franqueza, que tal a torrada?
— Não há melhor torrada em Lisboa, Doutor Margaride.
Ele apertou-me a mão com afeto, e separamo-nos, quando estava dando a meia-noite no velho relógio do Carmo.
Estugando o passo pela Rua Nova-da-Palma, eu sentia agora bem claramente, bem amargamente, o erro da minha vida... Sim, o erro! Porque até aí, essa minha devoção complicada, com que eu procurara agradar à Titi e ao seu ouro, fora sempre regular, mas nunca fora fervente. Que importava murmurar com correção o terço diante de Nossa Senhora do Rosário? Diante de Nossa Senhora em todas as suas encarnações, e bem em evidência para comover a Titi, eu devia mostrar habilmente uma alma ardendo em labaredas de amor beato, e um corpo pisado, penitente, ferido pelos picos dos cilícios... Até ai a Titi podia dizer com aprovação: «É exemplar». Era-me preciso, para herdar, que ela exclamasse um dia, babada, de mãos postas: «E santo!»
Sim! Eu devia identificar-me tanto com as cousas eclesiásticas e submergir-me nelas de tal sorte, que a Titi, pouco a pouco, não pudesse distinguir-me claramente desse conjunto rançoso de cruzes, imagens, ripanços, opas, tochas, bentinhos, palmitos, andores, que era para ela a religião e o céu; e tomasse a minha voz pelo santo ciciar dos latins de missa; e a minha sobrecasaca preta lhe parecesse já salpicada de estrelas, e diáfana como a túnica de bem-aventurança. Então, evidentemente, ela testaria em meu favor — certa que testava em favor de Cristo e da sua doce Madre Igreja!
Porque agora, eu estava bem decidido a não deixar ir para Jesus, filho de Maria, a aprazível fortuna do Comendador G. Godinho. Pois quê! Não bastavam ao Senhor os seus tesouros incontáveis; as sombrias catedrais de mármore, que atulham a terra e a entristecem; as inscrições, os papéis de crédito que a piedade humana constantemente averba em seu nome; as pás de ouro que os Estados, reverentes, lhe depositam aos pés trespassados de pregos; as alfaias, os cálices, e os botões de punho de diamantes que ele usa na camisa, na sua Igreja da Graça? E ainda voltava, do alto do madeiro, os olhos vorazes para um bule de prata, e uns insípidos prédios da Baixa! Pois bem! disputaremos esses mesquinhos, fugitivos haveres, tu, ó filho do carpinteiro, mostrando à Titi a chaga que por ela recebeste, uma tarde, numa cidade bárbara da Ásia, e eu adorando essa chaga, com tanto ruído e tanto fausto, que a Titi não possa saber onde está o mérito, se em ti que morreste por nos amar de mais, se em mim que quero morrer por não te saber amar bastante!... Assim pensava, olhando de través o céu, no silêncio da Rua de São Lázaro.
Quando cheguei à casa, senti que a Titi estava no oratório, sozinha, a rezar. Enfiei para o meu quarto, sorrateiramente; descalcei-me; despi a casaca; esguedelhei o cabelo; atirei-me de joelhos para o soalho, e fui assim, de rastos, pelo corredor, gemendo, carpindo, esmurrando o peito, clamando desoladamente por Jesus, meu Senhor...
Ao ouvir, no silêncio da casa, estas lúgubres lamentações de arrastada penitência, a Titi veio à porta do oratório, espavorida.
— Que é isso, Teodorico, filho, que tens tu?...
Abati-me sobre o soalho, aos soluços, desfalecido de paixão divina.
— Desculpe, Titi... Estava no teatro com o Doutor Margaride estivemos ambos a tomar chá, a conversar da Titi... E vai de repente, ao voltar para casa, ali na Rua Nova-da-Palma, começo a pensar que havia de morrer, e na salvação da minha alma, e em tudo o que Nosso Senhor padeceu por nós, e dá-me uma vontade de chorar... Enfim, a Titi faz favor, deixa-me aqui um bocadinho só, no oratório, para aliviar...
Muda, impressionada, ela acendeu reverentemente, uma a uma, todas as velas do altar. Chegou mais para a borda uma imagem de São José, favorito da sua alma, para que fosse ele o primeiro a receber a ardente rajada de preces que ia escapar-se, em tumulto, do meu coração cheio e ansioso. Deixou-me entrar, de rastos. Depois, em silêncio, desapareceu, cerrando o reposteiro com recato. E eu ali fiquei, sentado na almofada da Titi, coçando os joelhos, suspirando alto, e pensando na Viscondessa de Souto Santos ou de Vilar-o-Velho, e nos beijos vorazes que lhe atiraria por aqueles ombros maduros e suculentos, se a pudesse ter só um instante, ali mesmo que fosse, no oratório, aos pés de ouro de Jesus, meu Salvador!
Corrigi então a minha devoção e tornei-a perfeita. Pensando que o bacalhau das sextas-feiras não fosse uma suficiente mortificação, nesses dias, diante da Titi, bebia asceticamente um copo de água e trincava uma côdea de pão; o bacalhau comia-o à noite, de cebolada, com bifes à inglesa, em casa da minha Adélia. No meu guarda-roupa, nesse duro inverno, houve apenas um paletó velho, tão renunciado me quis mostrar aos culpados regalos da carne; mas orgulhava-me de ter lá, purificando os cheviotes profanos, a minha opa roxa de irmão do Senhor dos Passos, e o devoto hábito cinzento da Ordem Terceira de São Francisco. Sobre a cômoda ardia uma lamparina perenal, diante da litografia colorida de Nossa Senhora do Patrocínio; eu punha todos os dias rosas dentro de um copo, para lhe perfumar o ar em redor; e a Titi, quando vinha remexer nas minhas gavetas, ficava a olhar a sua padroeira, desvanecida, sem saber se era à Virgem, ou se era a ela, indiretamente, que eu dedicava aquele preito da luz e o louvor dos aromas. Nas paredes dependurei as imagens dos santos mais excelsos, como galeria de antepassados espirituais, de quem tirava o constante exemplo nas difíceis virtudes; mas não houve de resto no céu, santo, por mais obscuro, a quem eu não ofertasse um cheiroso ramalhete de Padre-Nossos em flor. Fui eu que fiz conhecer à Titi São Telésforo, Santa Secundina, o beato Antônio Estroncônio, Santa Restituta, Santa Umbelina, irmã do grão São Bernardo, e a nossa dileta e suavíssima patrícia Santa Basilisca, que é solenizada juntamente com São Hipácio, nesse festivo dia de agosto em que embarcam os círios para a Atalaia.