Durante os nossos passeios de carro até ali ele tinha-se limitado a beijar-me a boca e o pescoço, mas uma certa manhã enquanto me beijava, senti os seus dedos agarrarem nos botões da minha blusa. Depois uma sensação de frescura no peito fez com que eu erguesse os olhos por cima do seu ombro para o espelho do pára-brisas. Reparei então que um dos meus seios estava nu. Enchi-me de vergonha, mas não tive coragem para me tapar. Foi o próprio Gino, num gesto rápido, que parecia secundar a minha atrapalhação, quem abotoou novamente a minha blusa. Esta delicadeza da sua parte comoveu-me profundamente, deixando-me ao mesmo tempo encantada e perturbada. No dia seguinte Gino repetiu o seu gesto. Desta vez o meu prazer aumentou e a minha vergonha diminuiu. A partir de então habituei-me àquela manifestação do seu desejo e parece-me que se ele deixasse de a repetir pensaria que tinha deixado de gostar de mim.
Conversávamos com frequência do que seria a nossa vida depois de nos casarmos. Gino falava-me também muito da sua família, que vivia na província, a qual não podia com justiça considerar-se pobre, pois possuía algumas feiras de terra.
Tenho a impressão de que — o que aliás é vulgar nos autênticos mentirosos — em dado momento ele começou a acreditar nas suas próprias mentiras. Certo que mostrava por mim uma forte atracção, e, visto que a nossa intimidade se tornava dia a dia cada vez maior, esse sentimento devia ao mesmo tempo tornar-se mais sincero. Pela minha parte as suas palavras adormeciam os meus remorsos e davam-me uma impressão de felicidade ingénua e completa que nunca mais depois disso voltei a conhecer. Eu amava, era amada, pensava que me casaria muito breve e nada mais se poderia desejar neste mundo.
Minha mãe compreendia perfeitamente que os nossos passeios matinais não eram completamente inocentes e deu-mo a perceber muitas vezes por meio de frases como esta:
“Não sei o que vocês fazem quando passeiam de automóvel, mas a verdade é que também o não quero saber…” Ou então: “Tu e o Gino andam a preparar uma grande tolice! Tanto pior para ti!”
Dizia-me com frequência coisas no género. Mas por vezes as suas recriminações pareceram-me estranhamente desinteressadas.
Dir-se-ia que não só encarava com antecipada resignação a ideia de que eu ia tornar-me amante do Gino como até no fundo desejava que isso acontecesse. Agora sei que ela esperava sempre o momento próprio para impedir que o meu casamento se realizasse.
3
Uma manhã, Gino disse-me que os patrões tinham partido para o campo, que as criadas estavam de férias nas suas aldeias e que lhe tinham entregue a casa a ele e ao jardineiro. Não gostaria eu de a visitar? Tinha-me falado dela tantas vezes e em termos tão admirativos que eu estava cheia de curiosidade: aceitei de boa vontade. Mas no preciso momento em que disse que sim, uma perturbação profunda feita de desejo fez-me compreender que a minha curiosidade de ver a casa não tinha passado de um pretexto, e que o verdadeiro motivo desta visita era bem outro. Entretanto, como sempre acontece quando se aspira a uma coisa que não se quer desejar, fingi não acreditar no pretexto, enganando-me a mim própria e a ele.
— Sei que não devia ir — disse-lhe, subindo para o carro.
— Mas não nos vamos demorar muito tempo, pois não? Ouvia-me a mim própria pronunciar estas palavras numa voz ao mesmo tempo amedrontada e provocante. Gino respondeu-me muito sério:
— Só o tempo de ver a casa. Depois vamos ao cinema.
A moradia elevava-se numa ruazinha que descia do novo bairro rico, no meio de outras lindas casas. Estava um dia calmo e todas essas casas estendendo-se pela colina debaixo de um céu muito azul, com as suas fachadas de tijolos vermelhos ou de pedra branca, os seus alpendres ornados de estátuas, as suas pérgulas envidraçadas, os terraços e as varandas repletos de gerânios, os jardins onde cresciam as suas árvores copadas entre uma moradia e outra — tudo isso me dava uma deliciosa sensação de descoberta e de novidade. Era como se entrasse num mundo mais livre e mais belo, onde seria mais agradável viver. Não pude deixar de me lembrar do meu bairro, da grande estrada que corre junto das muralhas, das construções pobres, e declarei a Gino :
— Já estou arrependida de ter vindo.
— Porquê? — perguntou-me com ar desenvolto. — Não nos demoraremos, está descansada!
— Tu não percebes! — respondi. — Estou arrependida porque agora vou corar com vergonha da minha casa e do meu bairro.
— Ah! Isso sim! — disse com um ar aliviado. — Mas que queres fazer? Era preciso ter-se nascido milionário… Neste bairro só moram milionários.
Abriu o portão e levou-me por uma álea coberta de saibro, entre duas filas de arbustos tratados com inexcedível esmero.
Entrámos na moradia por uma porta de vidro espesso e encontrámo-nos no vestíbulo da entrada, vazio, pavimentado de placas de mármore brancas e negras, desenhando enormes quadrados encerados, brilhantes como espelhos. Do vestíbulo passámos ao hall, espaçoso e cheio de luz, para o qual davam as salas do rés-do-chão. Ao fundo do hall via-se uma escadaria toda branca, que conduzia aos andares superiores.
Vendo este hall senti-me tão intimidada que comecei a andar nos bicos dos pés. Gino reparou e disse-me a rir que podia fazer todo o barulho que quisesse porque ninguém estava em casa.
Mostrou-me o salão: uma grande sala cheia de poltronas e divãs; a sala de jantar, mais pequena, com uma mesa oval, cadeiras e credências de uma bela madeira castanha, brilhante; a rouparia cheia de armários pintados de esmalte branco.
Num quarto pequenino havia um bar engastado numa reentrância da parede, um verdadeiro bar com prateleiras para as garrafas, a máquina de café niquelada e o balcão forrado de zinco: dir-se-ia uma capelinha, tanto mais que uma grade baixa fechava a entrada.
Perguntei a Gino onde era a cozinha: disse-me que a cozinha e os quartos do pessoal eram na cave. Era a primeira vez na minha vida que eu entrava numa casa destas; instintivamente tocava cada coisa com a ponta dos dedos, como se não acreditasse no que viam os meus olhos. Tudo me parecia novo e precioso: o vidro, a madeira, o mármore, o metal, os tecidos. Não me saia da cabeça a comparação entre estas paredes, estes pavimentos, estes móveis com os ladrilhos sujos, as paredes enegrecidas e os móveis desconjuntados da nossa casa, e pensei que minha mãe tinha razão quando dizia que nesta vida só o dinheiro conta. Pensava também que as pessoas que viviam sempre no meio destas bonitas coisas deviam por força ser belas e boas, não poderiam gritar, ter questões, praticar enfim a maior parte dos actos que eu tinha visto fazer na minha casa e nas outras iguais à minha.
Entretanto, Gino explicava-me pela centésima vez a vida que se fazia lá dentro, como se qualquer coisa de todo aquele luxo e de toda aquela riqueza se reflectisse nele.
— Têm pratos de porcelana… as travessas são todas de prata… comem cinco pratos diferentes, bebem três qualidades de vinho. À noite a senhora veste um vestido decotado e ele um smoking… Depois do jantar, a criada de quarto leva-lhes uma bandeja de prata com sete qualidades de cigarros, só cigarros estrangeiros, bem entendido!… Depois saem da sala de jantar e levam-lhes o café e os licores nesta mesinha rolante… têm sempre convidados… umas vezes dois… outras vezes quatro… A senhora tem brilhantes deste tamanho!… e um colar de pérolas que é uma maravilha. Só em jóias deve ter uns bons milhões…