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Triunfante, tratei de pôr minha mãe ao corrente da oferta de Gino. Limitou-se a observar que era uma soma bem miserável; apenas o necessário para me deitar poeira nos olhos sem se arruinar!

Este foi na minha vida um período muito feliz. Encontrava-me todas as noites com Gino, e amávamo-nos onde era possíveclass="underline" sobre o assento de trás do carro, de pé, no canto escuro de uma rua solitária, no campo, num prado, ou ainda na moradia, no quarto de Gino. Uma noite em que ele me levou a casa, amámo-nos no patamar, em frente da porta do apartamento, estendidos sobre os ladrilhos, no escuro. Outra vez possuímo-nos no cinema, encolhidos nas últimas cadeiras, mesmo debaixo da cabina do operador. Gostava de me encontrar misturada com ele no meio da multidão, dos eléctricos e dos lugares públicos, porque as pessoas me comprimiam contra ele; aproveitava para colar todo o meu corpo ao seu. Experimentava constantemente a necessidade de lhe apertar a mão, de lhe passar os dedos pelos cabelos e de lhe fazer qualquer outra carícia, no sitio em que estivéssemos, mesmo na presença de terceiros, com a ilusão de que ninguém se apercebia. como sempre que se cede a uma paixão irresistível. Gostava infinitamente de amar: talvez eu gostasse mais do amor do que propriamente de Gino, e sentia-me levada a praticá-lo não somente pelo sentimento que experimentava por ele, mas também pelo prazer que sentia. Não pensava com certeza que poderia sentir o mesmo prazer com outro homem. Mas apercebia-me de uma maneira obscura de que o nosso amor não podia explicar inteiramente o zelo, a habilidade e a paixão que punha nas minhas carícias. Isso tinha um carácter autónomo; era uma espécie de vocação que, de toda a maneira, mesmo sem as ocasiões que Gino me proporcionava, acabaria por manifestar-se.

Entretanto, a ideia do casamento era mais importante para mim que qualquer outra. Ajudava minha mãe o mais que podia, a fim de ganhar dinheiro, e deitava-me sempre muito tarde. Nos dias em que não posava no atelier corria os armazéns com Gino, para escolher os móveis e as coisas para o enxoval. Tinha pouco dinheiro para gastar, o que tornava as minhas pesquisas mais atentas ainda e mais meticulosas. Pedia para ver objectos que sabia bem que não podia comprar, examinava-os longamente, discutindo o preço com o vendedor; depois, mostrando pouco entusiasmo e prometendo voltar, saía sem nada comprar. Não notava que estas incursões cobiçosas pelas lojas. Este exame angustioso dos objectos que me estavam interditos me levavam a reconhecer, mau grado meu, como minha mãe tinha razão no que dizia: sem dinheiro não se tem direito à mais pequena felicidade. Depois da minha visita à moradia, foi a segunda vez que eu deitei os olhos sobre o paraíso da riqueza: vendo-me excluída sem que tivesse culpa não me podia impedir de experimentar alguma amargura e me sentir perturbada. Mas como já o tinha feito na moradia, esforcei-me no amor por esquecer a injustiça, este amor que era o meu único luxo e permitia que me sentisse igual a todas as outras mulheres mais ricas e com mais sorte do que eu. Depois de muitas discussões e muitas procuras, decidi-me por fim a fazer as minhas compras: aquisições verdadeiramente modestas.

Como o dinheiro não chegasse, comprei pagando em prestações mensais, um quarto completo, estilo moderno, quer dizer, uma cama de casal, uma cómoda com espelho fazendo de toucador, duas mesas-de-cabeceira, duas cadeiras e um armário.

Eram coisas extremamente vulgares, feitas em série e de fabricação grosseira, mas a paixão que me inspiraram imediatamente estes pobres móveis era incrível. Tinha mandado caiar as paredes do quarto, pintar de novo as portas e as janelas e raspar o chão tão bem que o nosso quarto era uma ilha de asseio no oceano infecto da casa. O dia em que me levaram os móveis foi sem dúvida um dos mais belos da minha vida. Experimentava uma sensação de incredulidade à ideia de que possuía um quarto como aquele: limpo, claro, arrumado, cheirando a cal e a tinta; e esta incredulidade manifestava-se num contentamento que me parecia inesgotável. Por vezes, quando tinha a certeza de que minha mãe não me observava, ia para o quarto, sentava-me nos colchões da cama e ficava horas inteiras a olhar à minha volta. Não me mexia mais que uma estátua, e contemplava os móveis como se não acreditasse na sua existência, como se receasse que se evaporassem de um momento para o outro e só ficassem as paredes; levantava-me às vezes para tirar o pó da madeira e puxava o lustro ternamente.

Creio que se me tivesse deixado levar pelos meus sentimentos beijaria a mobília. A janela, sem cortinas, dava sobre um vasto pátio, muito sujo, rodeado de outras casas longas e baixas, como a minha. Tinha-se a impressão de se olhar para um pátio de lazareto ou de prisão; mas naquela altura eu vivia em êxtase e já não via o pátio: sentia-me tão feliz como se o quarto desse para um lindo jardim cheio de árvores.

Imaginava a nossa vida lá dentro, Gino e eu: como dormiríamos e nos amaríamos. E saboreava de antemão a aquisição de outros objectos que compraria assim que pudesse; aqui um vaso para flores, ali um candeeiro, além um cinzeiro ou qualquer outro bibelot. O meu único desgosto era não poder ter uma banheira, se não parecida com a que tinha visto, pelo menos nova e limpa. Más tinha decidido que traria sempre o meu quarto limpo e arrumado. A minha visita à moradia convencera-me de que o luxo começava por duas coisas: a ordem e o asseio.

4

Nesse tempo, como continuasse a posar nos ateliers, criei amizade com um modelo chamado Gisela. Era uma rapariga bem feita, com a pele muito branca, cabelos pretos encrespados, os olhos pequeninos e azuis-escuros e uma boca vermelha. O seu feitio era muito diferente do meu: violento, apaixonado e vibrante, mas ao mesmo tempo prático e interesseiro; foi exactamente esta diversidade que nos uniu. Não lhe conhecia outro emprego que o de modelo; mas ela andava muito mais bem vestida do que eu e não escondia os presentes de um homem que apresentava como noivo. Lembro-me de que naquele Inverno ela usou algumas vezes um casaco preto com gola e punhos de astracã que eu muito lhe invejava. O noivo chamava-se Ricardo, era um rapaz alto e gordo, pacífico e bem nutrido, com uma cara lisa como um ovo, que me pareceu então bela. Estava sempre reluzindo, cheio de cosméticos e com fatos novos: o pai era dono de uma loja de gravatas e roupa interior para homem.

Possuía a simplicidade Que se aproxima da imbecilidade: era alegre, bonacheirão e mesmo bom, creio eu; Gisela e ele eram amantes sem que entre eles, suponho, houvesse qualquer promessa de casamento, como existia entre mim e Gino. Gisela, aliás sem grandes esperanças, pensava em se casar. Quanto a Ricardo, estou convencida de que a ideia de uma união com Gisela nunca lhe tinha aflorado o espírito; a esta, bem mais experiente que eu, tinha-se-lhe metido em cabeça proteger-me e educar-me. Ela tinha — para resumir as coisas — sobre a vida e sobre a felicidade as mesmas ideias de minha mãe, salvo que na minha mãe estas ideias encontravam uma expressão amarga e violenta porque eram o fruto de decepções e privações, ao passo que em Gisela esta maneira de ver vinha da sua prática e fazia-se acompanhar de uma grande suficiência e de uma grande profundidade. Minha mãe, num certo sentido, contentava-se em enunciar essas ideias como se para ela a afirmação dos princípios contasse de antemão para a sua aplicação. Gisela, pelo contrário, tendo pensado sempre dessa maneira e não compreendendo que alguém pensasse diferentemente, admirava-se de que eu não me comportasse exactamente como ela. E foi apenas quando, apesar dos meus esforços em contrário, deixei transparecer a minha desaprovação, que o seu espanto se transformou em cólera e ciúme. Gisela compreendeu de súbito que eu não me limitava a recusar as suas lições e a sua protecção, mas ia mais longe, e a condenava do alto das minhas aspirações afectuosas e desinteressadas. Foi então que nasceu no seu espírito, talvez inconscientemente, o desejo de anular essa condenação, tornando-me igual a ela. Enquanto isso não acontecia, não cessava de me repetir que eu era completamente parva em levar esta vida de sacrifícios só para me manter honesta; que era uma dor de alma ver-me tão mal vestida; que, se eu quisesse, com a minha beleza poderia mudar por completo de existência. Acabei por me envergonhar de a deixar convencida de que nunca tinha conhecido qualquer homem e por lhe contar as minhas relações com Gino, informando-a ao mesmo tempo de que estávamos noivos e nos casaríamos brevemente. Ela perguntou-me imediatamente o que ele fazia, e quando soube que era chauffeur franziu depreciativamente o nariz. Mas nem por isso deixou de me pedir que lho apresentasse.