Gisela era a minha melhor amiga e Gino o meu noivo. Hoje estou à altura de os julgar friamente, mas naquele tempo a minha cegueira perante os seus caracteres era completa. Quanto a Gino, já disse que o achava perfeito. No que diz respeito a Gisela, talvez notasse os seus defeitos, mas em compensação julgava que ela tinha um grande coração e uma grande afeição por mim, porque atribuía a sua solicitude pela minha sorte não ao despeito por me achar inocente e ao desejo de me corromper, mas a uma bondade mal compreendida e fora de propósito. Tanto assim que os apresentei, não sem apreensão; na minha ingenuidade, eu tinha querido que eles se fizessem amigos. A apresentação foi numa leitaria. Gisela durante todo o tempo mostrou uma atitude claramente hostil.
Pelo lado de Gino, acreditei de princípio que ele quisesse seduzir Gisela, porque, seguindo o seu hábito, encaminhou a conversa para o assunto da moradia e alongou-se a exaltar a riqueza dos patrões, como se esperasse dissimular assim a classe medíocre da sua condição. Mas Gisela não desarmou: persistia na sua atitude hostil. Não me lembro já a que propósito, ela encontrou maneira de o fazer notar:
— Teve muita sorte em ter encontrado Adriana!
— Porquê? — perguntou Gino, muito admirado.
— Porque habitualmente os chauffeurs arranjam-se com as criadas!
Vi Gino corar; mas ele não era homem para se deixar apanhar desprevenido.
— É verdade! É verdade! — repetia lentamente, baixando o tom como se considerasse pela primeira vez um facto evidente que até então lhe tivesse escapado. — Com efeito o chauffeur que lá esteve antes de mim casou justamente com uma cozinheira; compreende-se, é muito natural! Eu devia ter feito o mesmo: os chauffeurs casam com criadas e as criadas com chauffeurs… Pergunto a mim mesmo como não pensei nisso mais cedo!… Aliás — acrescentou negligentemente —, tinha preferido que Adriana deixasse deliberadamente de ser honesta do que ser modelo… não tanto — continuou levantando a mão, como a prevenir uma objecção de Gisela — por causa propriamente do ofício, se bem que, para dizer a verdade, não consigo engolir essa história de se pôr toda nua diante dos homens… mas sobretudo porque este trabalho proporciona certas ligações de amizade que…
Levantou a cabeça e fez uma careta. Depois, oferecendo a Gisela o seu maço de cigarros:
— Fuma? — perguntou.
De momento Gisela não soube que responder; limitou-se a recusar o cigarro. Depois olhou o relógio de pulso e disse:
— Adriana, temos de nos ir embora, é tarde.
Era efectivamente tarde.
Despedimo-nos de Gino e saímos da pastelaria. Uma vez na rua, Gisela disse-me:
— Mas tu cometeste um erro enorme!… Eu nunca casaria com um homem assim!
— Não gostaste dele? — perguntei-lhe ansiosamente.
— Absolutamente nada. Primeiro tinhas dito que ele era alto, e ele é quase pouco mais pequeno do que tu! Tem uns olhos falsos e que não nos olham de frente… é sempre artificial… Fala de uma maneira tão afectada que se conhece a um quilómetro de distância que não diz o que pensa… E é de uma vaidade para um chauffeur!
— Mas eu amo-o — objectei.
Ela respondeu-me com calma:
— Sim, só tu, porque ele não te ama; vais ver que um dia abandona-te.
Fiquei magoada com esta profecia tão segura e tão parecida com a da minha mãe. Hoje posso dizer que numa hora, à parte a maldade, Gisela compreendera melhor o carácter de Gino que eu durante tantos meses. Por seu lado, o julgamento que Gino fazia de Gisela era igualmente maldoso, mas tinha que reconhecer em seguida que, parcialmente pelo menos, era e acto. Na realidade, estava cega não só pela minha inexperiência mas também pela afeição que dedicava aos dois…
Quando se pensa mal das pessoas, está-se quase sempre perto da verdade!
— A tua Gisela — disse-me ele — é o que na minha terra se chama uma boa tipa!
Olhei-o com um ar espantado. Ele explicou:
— Uma rapariga das ruas. Está toda orgulhosa de andar bem vestida, mas… como ganha o dinheiro?
— É o seu noivo quem lho dá.
— Um noivo diferente todas as noites… entretanto ouve: é preciso escolher entre ela e eu!
— Que queres dizer?
— Quero dizer que és livre de fazer o que quiseres… mas se continuas a dares-te com ela deves renunciar a ver-me… Ou ela ou eu!
Procurei fazê-lo mudar de ideias, mas sem resultado. A atitude desdenhosa de Gisela tinha-o com certeza ferido; mas ele devia, na sua antipatia indignada, a mesma fidelidade ao seu papel de noivo que lhe tinha sugerido contribuir para os gastos dos nossos preparativos de casamento.
— A minha noiva não deve andar com mulheres de má vida! — repetia com ar inflexível.
Tomada do mesmo receio inicial de ver ir por água abaixo o meu casamento, acabei por lhe prometer não tornar a ver Gisela, mas sabia no meu coração que não poderia cumprir a promessa, até mesmo pela impossibilidade de o fazer: Gisela e eu posávamos à mesma hora no mesmo atelier!
Desde esse dia continuei a falar-lhe às escondidas de Gino.
Quando estávamos juntas, ela nunca perdia oportunidade de fazer alusões irónicas e desdenhosas ao meu noivado. Eu tinha a ingenuidade de lhe fazer confidências a respeito das minhas relações com Gino; era justamente destas confidências que ela se servia para me ferir e me representar a minha vida presente e futura sob as cores mais negras. Como o seu amigo Ricardo parecia não notar a mínima diferença entre ela e eu, considerando-nos as duas como raparigas fáceis, que não mereciam qualquer respeito, ele prestava-se de boa vontade às brincadeiras de Gisela e reforçava as piadas, mas de maneira estúpida e sem malícia, porque, como já disse, não era inteligente nem mau. Para ele o meu noivado não era outra coisa que um assunto para boas graçolas, para matar o tempo.
Mas Gisela, a quem a minha virtude fazia o efeito de uma censura viva, e que queria tornar-me igual a ela, para me tirar o direito de a desaprovar, punha nas suas graçolas encarniçamento e azedume, procurando por todas as formas mortificar-me e humilhar-me. Atacava sobretudo o meu ponto fraco: a maneira de vestir.
— Hoje — dizia — tenho francamente vergonha de andar contigo!