Ou então:
— O Ricardo não permitiria que eu saísse com esses trapos em cima de mim. Não é verdade, Ricardo?
— Isso é que é um índice de amor, minha querida! Ingenuamente eu caía nesta grosseira armadilha. Exaltava-me, defendia Gino, defendia mesmo os meus vestidos, por vezes com pouca convicção, mas acabava sempre por perder, corar e ficar com lágrimas nos olhos. Um dia Ricardo teve pena de mim e declarou:
— Hoje vou dar um presente a Adriana. Vou oferecer-lhe uma mala!
Mas Gisela opôs-se violentamente a este oferecimento, declarando:
— Não, não! Nada de ofertas. Ela tem o seu Gino. Que faça com que ele lhe dê presentes!
Ricardo, que se propusera oferecer-me a mala por pura bondade de alma, sem imaginar nem por sombras o prazer que me teria dado a sua oferta, renunciou logo à sua ideia; e eu, por ponto de honra, fui nessa mesma tarde comprar uma mala com o meu dinheiro. No dia seguinte apareci aos amantes com a minha mala no braço e disse-lhes que tinha sido um presente de Gino. Foi a única vitória que consegui no decurso destas deploráveis escaramuças. Custou-me muito, porque era uma boa mala, e a paguei muito cara.
Quando Gisela julgou ter-me mortificado e humilhado suficientemente, à força de ironias, de vexames e de sermões, chamou-me e disse que tinha uma coisa importante a comunicar-me :
— Mas vais deixar-me falar até ao fim! — explicou. Não vais mostrar-te intransigente, como é teu hábito, antes de teres compreendido?
— Conta — disse-lhe.
— Sabes que sou muito tua amiga — começou. — Considero-te como uma irmã. A tua beleza permitir-te-ia teres tudo o que quisesses… Faz realmente pena ver-te sempre vestida como uma pedinte.
Aqui parou e olhou-me com ar solene.
— Há um senhor extremamente distinto, muito sério… que te viu e se interessa imenso por ti. Ele é casado, mas a família está na província. É um grande da polícia — acrescentou baixando a voz. — Se tu quiseres, eu posso apresentar-to. Como te digo, é um senhor muito sério e muito fino; com ele podes estar certa de que mais ninguém saberá… De resto, ele está muito ocupado e só te encontrarias com ele duas ou três vezes por mês. Não há inconveniente em que continues essa história com o Gino, se isso te agrada… nem mesmo que te cases… mas ele procurará proporcionar-te uma vida melhor do que a que tens agora. Que dizes?
— Agradeço-te muito mas não posso aceitar! — respondi peremptoriamente.
— Mas porquê? — gritou ela, sinceramente estupefacta.
— Porque não. Amo o Gino, e se aceitasse nunca mais poderia olhá-lo de frente.
— É ideia tua, porque Gino nada saberá!
— É justamente por isso!
— Pensar — pronunciou então como se falasse consigo própria — que se aqui há uns tempos me tivessem feito uma oferta semelhante! Então, que devo dizer-lhe? Não queres reflectir?
— Não, não! Não aceito!
— És uma idiota! — disse-me Gisela, desapontada. — A isto chama-se recusar a fortuna!
Acrescentou muitas coisas do mesmo género, às quais respondi sempre da mesma maneira, e foi-se embora muito descontente.
Eu tinha recusado esta oferta com um grande entusiasmo, sem lhe discutir o valor. Só uma vez experimentei como que um sentimento de arrependimento; podia ser, apesar de tudo, que Gisela tivesse razão, podia ser esta a única maneira de obter tudo de que tão desesperadamente precisava. Mas afastei este pensamento e agarrei-me de preferência à ideia do casamento e da existência pobre, mas honesta, que tinha traçado para mim.
O sacrifício que me tinha imposto punha-me entretanto na obrigação de me casar a todo o custo; era ainda mais forçoso que anteriormente.
Não consegui resistir a um sentimento de vaidade e informei minha mãe da oferta de Gisela. Pensei que isso lhe agradaria duplamente: sabia até que ponto ela estava orgulhosa da minha beleza e quais as suas ideias; esta oferta inflamava o seu orgulho e confirmava o bom fundamento das suas convicções. Mas fiquei estupefacta com a agitação que lhe provocou a minha notícia. Os olhos brilharam de avidez; todo o seu rosto corou de contentamento:
— Mas quem é? — perguntou por fim.
— Um senhor rico — disse-lhe. Tinha vergonha de confessar que era um polícia.
— Ela disse que ele era muito rico?
— Sim… parece que ganha muitíssimo bem!
Não ousava exprimir o que visivelmente pensava: que tinha feito mal em recusar a oferta.
— Ele viu-te — repetiu — e disse-lhe que se interessava por ti… Porque não to apresentou?
— A que propósito, se eu não posso?
— Que pena ele já ser casado!
— Mesmo que fosse solteiro não o queria conhecer.
— Há tanta maneira de fazer as coisas! — disse minha mãe. — alguém que é rico… gosta de ti… uma coisa leva à outra… podia ajudar-te… sem te pedir nada!
— Não, não! — respondi. — Essa gente nada dá sem receber em troca.
— Nunca se sabe.
— Não, não — repetia eu.
— Nada quer dizer — disse minha mãe abanando a cabeça… — Isso não impede que Gisela seja uma boa rapariga e que tenha verdadeira afeição por ti. Outra qualquer teria tido inveja, não te teria falado. Ela, ao contrário, mostrou ser uma verdadeira amiga!
Depois da minha recusa, Gisela não me tornou a falar do tal senhor distinto e, com grande espanto meu, deixou de me picar a propósito do meu noivado. Continuava a vê-la às escondidas, assim como a Ricardo, mas mais de uma vez falei nela a Gino com o desejo de uma reconciliação, porque estes subterfúgios me desgostavam. Ele nem me deixava acabar de falar; renovava as suas expressões de raiva e jurava que se soubesse que eu a tornara a ver tudo acabaria entre nós. Falava seriamente e eu tinha quase a impressão de que teria de boa vontade aproveitado este pretexto para desfazer o casamento! Falei à minha mãe desta antipatia de Gino por Gisela e minha mãe declarou, sem parecer pôr maldade nesta observação:
— Ele não quer que andes com Gisela porque tem medo que tu faças a comparação dos trapos com que sais e as toálettes que o noivo dela lhe dá.
— Não! Somente diz que Gisela não lhe agrada.
— Ele é que não agrada… Se Gino pudesse saber que tu falas com Gisela e rompesse contigo!
— Mãe! — gritei, apavorada. — Que nem sequer te passe pela cabeça dizer-lho!
— Não, não! — respondeu muito depressa, como que arrependida. — Isso são assuntos vossos, não são da minha conta!
— Se lhe fores dizer — gritei, pondo toda a minha paixão neste grito. — Nunca mais me verás!
Estávamos no Verão de S. Martinho e os dias eram tépidos e límpidos. Gisela disse-me um dia que anuíra a fazer uma pequena viagem de automóveclass="underline" ela, Ricardo e um seu amigo.
Precisava-se de outra senhora para fazer companhia ao amigo e tinham pensado em mim. Aceitei com alegria, porque na mesquinhez da minha vida estava sempre à espreita de tudo o que me pudesse torná-la menos insípida. Disse a Gino que era obrigada a fazer um trabalho extraordinário, e de manhã, pontualmente, eu estava no local marcado, que era do outro lado da ponte Milvio. O carro já me esperava, e quando me aproximei nem Gisela nem Ricardo, sentados no banco da frente, se mexeram, mas o amigo de Ricardo saltou em terra e veio ao meu encontro. Era um homem novo, de meia estatura, calvo, a cara amarelenta, com grandes olhos pretos, um nariz aquilino e uma boca larga, com as comissuras dos lábios parecendo sorrir.
Estava vestido com elegáncia, mas num estilo diferente do de Ricardo, um estilo clássico: casaco cinzento-escuro, calças de um cinzento mais claro, colarinho engomado e gravata preta com uma pérola. Tinha uma voz doce. Os olhos também me pareceram doces, mas igualmente melancólicos e como que entristecidos.