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— Tu sabes como chamavam no meu tempo às raparigas, como tu, que estão sempre à espera de se casar e nunca o conseguem?

Empalideci e o meu coração deixou de bater.

— Como? — perguntei-lhe.

— A rapariga da despensa! — disse calmamente minha mãe. — Ele guarda-te na despensa como um resto de carne assada… Em determinada altura, à força de estar guardada na despensa, a carne estraga-se. Então, deita-se fora!

Tive um acesso de raiva e gritei:

— Não é verdade! Apesar de tudo, é a primeira vez que nós adiamos… e apenas por alguns meses… A verdade é que tu detestas o Gino por ele não ter dinheiro e ser chauffeur.

— Eu não detesto ninguém.

— Sim, tu detesta-o… e também te arrependeste de teres dado o teu dinheiro para o nosso quarto. Mas não tenhas medo…

— Minha filha, o amor torna-te idiota!

— Não tenhas medo — disse eu. — Todas as coisas que faltam ele as pagará… e serás reembolsada das que comprámos com o teu dinheiro. Olha!

E, levada pela minha exaltação, abri a mala e mostrei as notas que Astárito me tinha dado.

— É dinheiro dele! — continuei.

Estava tão doida por ele que ao dizer estas mentiras quase tinha a impressão de que era verdade.

— Foi ele quem me deu estas notas, e ainda tem mais! O seu olhar caiu sobre o dinheiro; o seu rosto tomou uma expressão tão arrependida e vexada que me encheu de remorsos. Havia já muito tempo que não a tratava tão mal e ao mesmo tempo apercebia-me de que acabara de dizer uma mentira e que no fim de contas este dinheiro não tinha sido o Gino quem mo havia dado. Sem dizer uma palavra, levantou a mesa, levou os pratos e saiu. Vi-a de costas, de pé, em frente do lava-louça, passando os pratos por água e pondo-os um a um sobre o mármore, para que secassem. Com a cabeça baixa e os ombros ligeiramente curvados, inspirou-me uma violenta piedade.

Impetuosamente, deitei-lhe os braços à roda do pescoço e desculpei-me :

— Perdoa ter-me excedido nas coisas que te disse. Não as pensei… Mas quando começas a falar de Gino fazes-me perder a cabeça.

— Então! Então! Deixa-me! — dizia fingindo esforçar-se por se desembaraçar de mim.

— É preciso que compreendas — acrescentei com paixão. — Se Gino não casa comigo… mato-me ou “vou fazer a vida”!

Gisela acolheu a noticia do adiamento do meu casamento pouco mais ou menos como minha mãe. Estávamos no seu quarto mobilado: eu, toda vestida, sentada na borda da cama, ela, em camisa, sentada diante do toucador, a pentear-se. Deixou-me falar até ao fim, sem fazer comentários, depois disse-me, triunfante e calma:

— Verás que eu tinha razão!

— Porquê?

— Ele não quer casar contigo, nem casará… Por agora não é na Páscoa, é no Dia de Todos-os-Santos. Do Dia de Todos-os-Santos passará para o Natal… Um belo dia, acabarás tu própria por compreender, e serás tu a deixá-lo.

Estas palavras faziam-me pena e tornavam-me furiosa. Mas, num certo sentido, eu já me tinha vingado na minha mãe. E depois, se eu tivesse dito o que pensava, teria que cortar relações com Gisela, e eu não o queria fazer, porque apesar de tudo era a minha única amiga. Ter-lhe-ia respondido que ela não queria que eu me casasse porque sabia que Ricardo nunca casaria com ela. Esta era a verdade, mas uma verdade muito dura de ouvir, e não me parecia justo ferir Gisela unicamente porque, logo que ela me falava de Gino, se deixava levar — talvez com sentido de defesa — por um vil sentimento de inveja e ciúme. Limitei-me pois a retorquir-lhe :

— Queres que nunca mais falemos disto? A ti, no fundo, que te importa que eu me case ou não? E a mim não me dá prazer voltar ao assunto.

Gisela levantou-se bruscamente do toucador e veio sentar-se na cama, ao meu lado:

— Que me importa a mim, dizes tu? — protestou com vivacidade.

Depois, passando-me o braço em volta da cintura:

— A mim, pelo contrário, faz-me raiva que te pretendam prejudicar!

— Mas isso não é verdade! — disse eu em voz baixa.

— Queria ver-te feliz — prosseguiu.

Calou-se um momento, depois perguntou, como que por acaso:

— A propósito… Astárito atormenta-me constantemente para te tornar a ver… Diz que não pode viver sem ti… Está realmente preso… Queres marcar-lhe um encontro?

— Não me fales de Astárito! — respondi-lhe.

— Reconheceu que se portou mal contigo, naquele dia, em Viterbo — continuou — mas no fundo ama-te e está pronto e reparar a sua falta de correcção.

— A única maneira que ele tem de a reparar é nunca mais me aparecer!

— Vamos! Vamos! Além disso, é um homem sério e que te ama muito… Ele quer absolutamente ver-te, falar-te… Porque não se encontram vocês num café, por exemplo, na minha presença?

— Não! — disse eu com decisão. — Não o quero tornar a ver.

— Vais arrepender-te.

— Vai tu com ele… com o Astárito!

— Eu? Ia já, minha filha! É um homem generoso, que não olha ao dinheiro… Mas é a ti que ele quer… realmente uma ideia fixa.

— Está bem! Mas eu nada quero dele.

Insistiu ainda muito a favor de Astárito, mas não me deixei convencer. No cúmulo do meu desejo desesperado de me casar e de ter família, estava firmemente decidida a não me deixar seduzir, nem pela razão, nem pelo dinheiro. Tinha esquecido até o frémito de prazer que Astárito me tinha provocado quando me introduzira à força aquele dinheiro na mão quando regressávamos de Viterbo. Como aconteceu frequentemente, era justamente porque receava que Gisela e minha mãe tivessem razão e que, por um motivo ou por outro, o meu casamento não se realizasse, que eu me agarrava à ideia desse casamento com uma esperança ainda mais forte e encarniçada.

6

Enquanto esperava, tinha pago todas as prestações dos meus móveis e pusera-me a trabalhar mais que nunca para ganhar mais dinheiro para pagar o meu enxoval. De manhã posava no atelier e à tarde fechava-me no grande quarto com minha mãe para trabalhar até à noite. Ela cosia à máquina junto da janela, e eu, sentada à mesa, ao pé dela, cosia à mão. Minha mãe tinha-me ensinado a trabalhar em roupa interior, no que eu desde o princípio me mostrara muito jeitosa e rápida. Havia sempre uma quantidade de casas para fazer e uma letra a bordar em cada camisa; eu fazia as letras particularmente bem, duras e tão em relevo que pareciam sair do tecido. A roupa interior para homem era a nossa especialidade, mas às vezes acontecia ter de confeccionar qualquer camisa ou combinação ou cuecas de mulher, sempre coisas vulgares, não só porque minha mãe não seria capaz de fazer coisas delicadas, mas também porque não conhecia senhoras que lhe fizessem encomendas. Quando cosia, o meu espírito perdia-se em divagações sobre Gino, o casamento, o meu passeio a Viterbo, minha mãe — a minha vida, em suma —, e o tempo passava depressa. O que pensava minha mãe nunca o soube, mas era bem certo que o seu cérebro estava ocupado, porque, enquanto trabalhava à máquina, tinha de tempo a tempo uma expressão furiosa, e se eu lhe falava nessa altura respondia-me mal. Para a noite, quando começava a escurecer, eu limpava o vestido de linhas e, pondo o meu fato mais bonito, ia ter com Gisela ou Gino, quando estava livre. Hoje pergunto a mim própria se seria feliz nesse tempo. Num certo sentido era, porque desejava ardentemente qualquer coisa que considerava próxima e possível. Aprendi depois que a verdadeira infelicidade vem quando, já não há esperança; torna-se então inútil passar bem ou mal e de nada se precisa.