Mais de uma vez, no decurso deste período, apercebi-me de que Astárito me seguia na rua. Ia para o atelier de manhã muito cedo. Habitualmente Astárito, imóvel, num vão de escada, no outro lado da rua, esperava que eu saísse. Nunca atravessava e enquanto eu me encaminhava rapidamente para a praça. junto das casas, ele limitava-se a seguir-me do outro lado, mais devagar, junto das muralhas. Julgo que me observava e isso bastava-lhe: era bem a imagem de um homem perdidamente apaixonado. Quando eu chegava à praça, ele ia postar-se na paragem do eléctrico fronteira àquela em que eu estava.
Continuava a observar-me, mas se eu deitava uma olhadela para o seu lado isso bastava para que disfarçasse e olhasse para a frente, fingindo interessar-se pela chegada do meu eléctrico.
Nenhuma mulher teria ficado indiferente perante um amor como aquele; embora firmemente decidida a não lhe tornar a falar, experimentava por vezes uma espécie de compaixão lisonjeada. Depois Gino chegava no carro, ou às vezes no eléctrico. E quando eu subia, fosse para o automóvel, fosse para o eléctrico, Astárito ficava no seu refúgio a ver afastar-me.
Uma dessas tardes, quando vinha jantar, entrei na sala grande e encontrei Astárito, de pé, o chapéu na mão, apoiado à mesa e conversando com minha mãe. Quando o vi em minha casa, à ideia de tudo o que ele poderia ter dito à minha mãe para a persuadir a intervir a seu favor, esqueci toda a compaixão e fui tomada de raiva.
— Que faz o senhor aqui? — perguntei.
Olhou-me e vi na sua cara a mesma expressão convulsa e trémula que tivera no carro quando íamos a caminho de Viterbo e me dissera que eu lhe agradava. Mas desta vez ele nem conseguia falar.
— Este senhor diz que te conheceu e que queria cumprimentar-te — começou minha mãe em ar confidencial.
Pelo seu tom compreendi que Astárito lhe falara exactamente no sentido que eu pensava e que talvez até mesmo lhe tivesse dado dinheiro.
— Tu — declarei a minha mãe — vais fazer o favor de te retirares!
A minha voz, quase selvagem, assustou-a: saiu, sem dizer palavra, para o lado da cozinha.
— Que faz o senhor aqui? — disse de novo a Astárito. Vá-se embora!
Olhou-me, pareceu mover os lábios, mas nada disse. Tinha os olhos revirados sobre as pálpebras, vendo-se quase o branco; cheguei a pensar que fosse desmaiar.
— Vá-se embora! — repeti, batendo com o pé no chão. Ou então chamo gente… Chamo um dos meus amigos que mora cá em baixo.
Muitas vezes depois perguntei a mim mesmo porque não fizera Astárito chantagem pela segunda vez: porque não me teria ele ameaçado, se eu não cedesse, de contar a Gino o que se tinha passado em Viterbo. Esta chantagem seria doravante muito mais bem sucedida, pois que me tinha de facto possuído, e havia testemunhas que não me permitiriam negar. Concluí que da primeira vez me tinha apenas desejado, mas que da segunda era realmente impelido pelo amor. O amor quer ser retribuído, e se Astárito me amava devia sentir quanto era insuficiente para ele possuir-me como naquele dia em Viterbo, muda, inerte, como morta. Por outro lado, daquela vez eu estava bem decidida a declarar a verdade; depois de tudo, se Gino me amava, devia compreender e perdoar-me. A minha atitude resoluta convenceu certamente Astárito da inutilidade de segunda chantagem.
A minha ameaça de chamar gente nada respondeu, mas pegou no chapéu e dirigiu-se para a porta. Quando chegou perto, baixou a cabeça e pareceu recolher-se um momento, para falar. Levantou os olhos para mim remexendo os lábios, mas toda a coragem pareceu abandoná-lo; olhou-me fixamente e ficou mudo.
Este segundo olhar pareceu-me muito longo. Acabou por esboçar com a cabeça um cumprimento e saiu fechando a porta.
Fui depois, furiosa, à cozinha e perguntei a minha mãe:
— Que disseste a esse homem?
— Eu? Nada! — respondeu ela, assustada. — perguntou-me a que género de trabalho nos entregávamos e disse-me que queria mandar fazer umas camisas.
— Se vais a casa dele, mato-te — gritei-lhe.
Olhou-me com olhar apavorado e respondeu:
— Não é preciso lá ir! Pode muito bem mandar fazer as suas camisas a outra pessoa!
— Não te falou de mim?
— Perguntou-me quando te casavas.
— E tu, que lhe respondeste?
— Que te casavas em Outubro.
— Não te deu dinheiro?
— Não. Porquê? — perguntou fingindo admiração. — Devia dar-mo?
Pelo tom da sua voz adquiri a convicção de que Astárito lhe dera dinheiro. Cai sobre ela e segurei-lhe violentamente o braço.
— Diz a verdade! Ele deu-te dinheiro! — gritei-lhe.
— Não. Não me deu.
Ela conservava a mão no bolso do avental. Apertei-lhe o pulso com uma violência terrível e vi saltar do bolso ao mesmo tempo que a mão uma nota de banco dobrada em duas. Assim que a deixei, ela curvou-se para a apanhar com uma tal avidez, uma tal cobiça, que a minha fúria cessou. Lembrei-me da emoção e da felicidade que me invadira a alma quando recebera as notas de Astárito em Viterbo. Senti que não tinha o direito de condenar minha mãe por ela experimentar os mesmos sentimentos que eu e ceder às mesmas tentações. Naquela altura teria preferido nada ter perguntado, nem ter visto aquela nota.
Limitei-me a observar com voz normaclass="underline"
— Afinal, sempre to tinha dado!
E sem esperar mais explicações saí da cozinha. Ao jantar, algumas suas alusões fizeram-me compreender que desejava tornar a falar de Astárito e do dinheiro. Mas eu desviei a conversa e ela não insistiu.
No dia seguinte, Gisela veio sem Ricardo à pastelaria onde habitualmente nos encontrávamos. Ainda não se tinha sentado e já me dizia sem mais preâmbulos:
— Hoje tenho de falar-te de uma coisa muito importante.
Uma espécie de pressentimento obrigou-me a olhá-la exangue.
— Se é uma má notícia — supliquei-lhe com voz branda — peço-te que não ma dês.
— Não é boa, nem é má — respondeu vivamente. — É uma notícia… eis tudo. Já te disse que Astárito…
— Não quero ouvir falar mais de Astárito.
— Mas ouve… não sejas criança. Pois, como te disse, o Astárito é um homem importante… um graúdo da polícia e da política.
Senti-me um pouco reconfortada. Nunca me ocupara de política.
Declarei sem esforço:
— Mesmo que esse Astárito fosse ministro, para mim era a mesma coisa!
— Uff! Como tu és… Ouve em vez de me interromperes! — declarou Gisela. — Astárito disse-me que era absolutamente necessário que fosses ter com ele ao ministério… precisa de falar-te… mas não de amor — acrescentou rapidamente. — Precisa de falar-te de uma coisa muito importante… De uma coisa que te diz respeito.
— Que me diz respeito?
— Sim… é para teu bem… pelo menos foi o que ele me disse.
Porque teria eu decidido naquele momento aceitar o convite de Astárito, apesar de todas as minha resoluções contrárias? Nem eu mesma sei. Respondi, mais morta que viva:
— Está bem. Irei.
Gisela ficou um pouco desconcertada com a minha passividade.
Foi então que se apercebeu da minha palidez e do meu ar assustado:
— Que tens? — disse-me. — Porque é da polícia? Mas nada tem contra ti! Nenhuma intenção tem de te prender.
Levantei-me, embora me sentisse vacilante.
— Está bem — repeti. — Irei; qual é o ministério?
— O Ministério do Interior. Mesmo em frente do Supercinema. Mas ouve…
— A que horas?
— Por toda a manhã… Mas ouve…
— Até logo.
Nessa noite dormi muito pouco. Fora a sua paixão, não atingia o que Astárito me podia querer, mas um pressentimento que me parecia infalível dizia-me que nada podia ser de bom. O lugar onde me tinha chamado fez-me supor que o assunto devia ter alguma ligação com a polícia. Por outro lado, eu sabia, como sabem todos os pobres, que logo que a polícia se mete nalguma coisa nunca é por bem. Depois de examinar minuciosamente a minha conduta, acabei por concluir que Astárito queria exercer sobre mim outra chantagem utilizando qualquer informação que obtivera sobre a vida de Gino. Eu não conhecia a vida de Gino; era possível que ele se tivesse comprometido politicamente.