Nunca me ocupara de política, mas não era parva a ponto de ignorar que havia muita gente que não suportava o regime fascista e que homens da profissão de Astárito eram precisamente encarregados de dar caça a esses inimigos do governo. A minha imaginação pintava de cores negras o dilema diante do qual Astárito me iria colocar: ou cedia de novo ou prendia Gino. A minha angústia baseava-se no facto de eu não querer de modo algum ceder a Astárito, mas tão-pouco permitir que metessem Gino na prisão. Quando fazia estas reflexões não experimentava qualquer compaixão por Astárito; odiava-o, simplesmente. Parecia-me um homem desprezível e baixo, indigno de viver, que era preciso punir impiedosamente! Entre outras soluções, a ideia de matar Astárito vinha-me com facilidade ao espírito. Mas, mais do que uma solução, era uma divagação mórbida da insónia; e de facto, como estas ideias loucas que nunca se traduzem em decisões objectivas e firmes, acompanhou-me até ao romper do dia. Via-me a pôr na minha mala a faca bem afiada e pontiaguda com que minha mãe descascava as batatas; procurar Astárito; ouvia-o dizer-me o que eu imaginara e com toda a força do meu braço forte cravava-lhe a minha faca no pescoço, entre a orelha e o seu alto colarinho de goma. Imaginava-me a sair da sala, fingindo a maior calma e correr a refugiar-me em casa de Gisela, ou de qualquer outra pessoa amiga. Mas, mesmo ardendo nestas visões sanguinárias, sabia que nunca seria capaz de fazer uma coisa semelhante; tenho horror ao sangue; tive sempre horror em fazer mal aos outros, e o meu carácter leva-me mais a submeter-me à violência que a cometê-la.
De madrugada dormitei um pouco. O dia nasceu; levantei-me e dirigi-me ao meu encontro habitual com Gino. Logo que nos encontrámos na nossa avenida dos arredores, depois de algumas palavras de conversa, esforcei-me por dar à minha voz uma entoação banal e perguntei:
— É verdade… nunca te interessaste por política?
— Por política? Que queres dizer?
— No sentido de ter feito qualquer coisa contra o governo?
Olhou-me com um ar de entendimento e perguntou por sua vez:
— Mas diz-me lá, achas que eu tenho ar de cobarde?
— Não, mas…
— Responde primeiro. Tenho ar de cobarde?
— Não — respondi-lhe —, nada disso me pareces. Somente…
— Então por que diabo queres tu que me ocupe de política?
— Não sei. É que muitas vezes…
— Não comigo. A esses que te insinuaram isso podes dizer-lhes que Gino Molinari não é um cobarde.
Próximo das onze horas, depois de ter rondado mais de uma hora em volta do Ministério sem me decidir a entrar. apresentei-me ao contínuo e perguntei por Astárito. Primeiro subi uma comprida escada de mármore, depois outra escada mais pequena, mas também comprida, depois, por largos corredores, acompanhou-me a uma antecâmara para onde davam três portas.
Estava habituada a ligar à palavra polícia a visão de locais minúsculos e repugnantes de comissariados de bairros; fiquei estupefacta com o luxo das repartições onde trabalhava Astárito. A antecâmara era um verdadeiro salão, com o chão de mosaico e velhos quadros nas paredes, como eu estava habituada a ver nas igrejas; grandes sofás estavam dispostos ao longo da parede e o centro era ocupado por uma mesa maciça.
Intimidada por tanto luxo, não pude deixar de pensar que Gisela tinha razão: Astárito devia ser realmente uma pessoa importante. E esta importância de Astárito foi-me bruscamente confirmada por um facto inesperado. Tinha acabado de me sentar quando uma das três portas se abriu e vi sair uma senhora muito alta e de uma grande beleza, mas muito nova, elegantemente vestida de preto, com um véu sobre a cara.
Astárito seguia-a. Julgando que chegara a minha vez, levantei-me. Astárito, fazendo-me um gesto com a mão, para me indicar que já me vira mas que ainda não era a minha altura, continuou a conversar com a senhora no limiar da porta. Em seguida, depois de a ter acompanhado até ao meio da sala e de se ter despedido dela inclinando-se e beijando-lhe a mão, fez um sinal para chamar outra pessoa que estava sentada ao meu lado na antecámara; um velhote de lunetas e barbicha branca, todo vestido de preto, que tinha aspecto de professor. Ao sinal de Astárito levantou-se logo, servil e submisso, e precipitou-se para ele. Os dois homens desapareceram no gabinete e fiquei de novo só.
O que mais me impressionou no decurso desta breve aparição de Astárito foi a diferença entre os seus modos de agora e os que tivera durante o nosso passeio a Viterbo. Tinha-o visto nessa altura embaraçado, convulso, mudo, trémulo; agora aparecera-me extremamente senhor de si mesmo, cheio de presença, com um ar de superioridade ao mesmo tempo autoritária e discreta. Até mesmo a voz mudara. Durante o passeio falara-me em voz baixa, quente e estrangulada, e a sua voz enquanto falava à senhora do véu tinha um timbre claro, frio, amável e tranquilo. Estava vestido de cinzento-escuro, como de costume, com um alto colarinho de goma que dava à sua cabeça qualquer coisa de fixo; mas agora o fato e os colarinhos que eu notara no decurso do passeio sem me impressionar pareciam-me inteiramente de harmonia com o lugar: os móveis, maciços e severos, as vastas proporções da sala, o silêncio e a ordem que reinavam ali era como se tudo fosse um uniforme. “Gisela tinha razão — pensava eu de novo —, este deve ser realmente uma personagem de marca; só o amor pode explicar os seus modos embaraçados e o sentimento constante de inferioridade nas suas conversas comigo.” Estas observações fizeram-me esquecer a minha primeira atrapalhação, e quando, ao fim de alguns minutos, a porta se abriu para deixar sair o velho, sentia-me suficientemente segura de mim. Desta vez, porém, Astárito não apareceu à porta para me convidar a entrar. Uma campainha retiniu, um contínuo entrou no gabinete de Astárito, fechando a porta atrás dele, reapareceu, aproximou-se de mim e, informando-se do meu nome em voz baixa, disse-me que podia entrar. Levantei-me e avancei sem pressa.
O gabinete de Astárito era uma sala quase tão grande como a antecâmara. Esta sala estava vazia, à parte um divã e dois fauteuils de couro num canto, e noutro canto uma mesa atrás da qual Astárito estava sentado. Por duas janelas veladas por cortinas brancas entrava na sala um dia frio, sem sol, silencioso e triste, que me fez pensar na voz de Astárito a falar com a senhora do véu. Havia um grande tapete no chão e dois ou três quadros nas paredes. Lembro-me de que um deles representava um prado verde que se estendia até à linha do horizonte limitado por montanhas rochosas. Astárito, como já disse, estava sentado à mesa; quando entrei, levantou os olhos de uns autos que estava a ler ou fingindo que lia. Eu disse “fingindo” porque tive logo a seguir a certeza de que era uma comédia com o fim de me intimidar e de me fazer sentir a sua autoridade e a sua importância. Com efeito, quando me aproximei da mesa vi que a folha que examinava com tanta atenção não continha mais que três ou quatro linhas rabiscadas à pressa. De mais a mais, a mão em que apoiava a testa e que segurava o cigarro aceso com dois dedos revelava a sua perturbação por uma tremura bem visível. Esta tremura tinha feito mesmo cair um pouco de cinza sobre a folha que ele lia com uma atenção muito marcada e cheia de artifício.
Pousei a mão na borda da mesa e disse-lhe:
— Cá estou!
Como se estas palavras fossem um sinal, deixou de ler, levantou-se muito devagar e veio dar-me os bons-dias, pegando-me nas mãos. Mas tudo isto num silêncio que muito contrastava com a atitude autoritária que se esforçava por conservar. Na realidade, como depressa compreendi, só a minha voz foi suficiente para lhe fazer esquecer o papel que se preparara para representar, e a sua perturbação habitual tomou-o de novo irresistivelmente. Beijou-me as mãos, primeiro uma, depois outra, olhando-me com os olhos ávidos e melancólicos e fez mençâo de falar; mas os seus lábios tremeram e durante um momento guardou siléncio.