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— Tu vieste! — disse por fim com a voz que eu conhecia, baixa e estrangulada.

Agora — talvez por contraste à sua atitude — sentia-me completamente descansada.

— Sim — disse-lhe —, vim. Na realidade não devia… Que tem para me dizer?

— Vem. Senta-te ali — murmurou.

Não me tinha largado a mão, que apertava com força. Levando-me pela mão, conduziu-me até junto do divã. Sentei-me, mas ele de repente ajoelhou-se diante de mim, abraçou-me as pernas e apoiou a cabeça nos meus joelhos. Tudo isto em silêncio e tremendo de desejo. Apoiava a fronte com tal força contra mim que me fazia doer; depois de um momento de imobilidade, levantou a sua cabeça calva como se a quisesse entalar entre os meus joelhos. Então fiz menção de me levantar e disse-lhe:

— Tinha uma coisa importante para me dizer. Diga-me, senão vou-me embora.

A estas palavras levantou-se com grande esforço, sentou-se a meu lado, tomou-me a mão e murmurou:

— Não era nada… Queria tornar a ver-te.

Fiz novamente menção de me levantar; reteve-me e continuou:

— Sim… E depois queria dizer-te que é preciso que nos entendamos de vez.

— De que maneira?

— Amo-te! — disse vivamente. — Amo-te tanto! Vem viver para minha casa; serás a dona da casa… como se fosses a minha mulher. Comprar-te-ei vestidos, jóias, tudo o que quiseres…

Parecia ter perdido a cabeça; os lábios ficavam imóveis e como estendidos, as palavras saíam-lhe desordenadamente.

— Ah! Foi para isto que me fez vir aqui? — perguntei-lhe friamente.

— Não queres?

— Isso agora não está em causa!

Coisa estranha, depois desta resposta nada mais disse, mas largou a mão e, fascinando-me quase com o seu olhar desvairado e fixo, acariciou-me a cara como se quisesse reconhecer um desenho. Os seus dedos eram leves e eu sentia a sua tremura enquanto eles me contornavam a cara, da testa à face e da face à testa. Era um gesto de homem verdadeiramente apaixonado e tal é a força persuasiva do amor, mesmo quando não se lhe quer corresponder, que durante um momento senti-me quase impulsionada a dizer-lhe, por piedade, algumas palavras menos duras e menos definitivas. Mas ele não me deu tempo. A carícia acabou e ele levantou-se protestando, num curioso tom empolado e pedante, onde se notava ao mesmo tempo a perturbação do desejo e não sei que zelo inesperado:

— Espera… é verdade… tenho uma coisa importante para dizer-te.

Dito isto, foi à mesa e pegou num caderno encarnado. Foi a minha vez de me perturbar quando o vi avançar para mim com o fascículo na mão.

— Que é isso? — perguntei com um fio de voz.

— … é… — que coisa curiosa o tom da sua voz autoritária e oficial misturado com a excitação! — … é uma informação que diz respeito ao teu noivo.

— Ah ! — fiz eu.

E durante um instante, mortalmente assustada, fechei os olhos.

Astárito não deu por isso; folheou o caderno, cujas folhas rangiam com a sua agitação.

— Gino Molinari, não é?

— Sim.

— E vais casar com ele em Outubro, não é?

— Sim.

— Mas eu verifico que Gino Molinari é casado — continuou ele —, e, para ser mais preciso, com Antonieta Partini, filha de Emílio Partini e de Diomira Lavagne, há quatro anos, e que têm uma pequenita chamada Maria. Presentemente a mulher vive em Orvieto, em casa da mãe.

Eu não pronunciei palavra; levantei-me do divã e dirigi-me para a porta, Astárito ficou de pé, no meio da sala, com o caderno nas mãos. Abri a porta e saí.

Lembro-me de que logo que me encontrei na rua, naquele dia doce e enevoado de um Inverno ameno, tive a amarga mas certa impressão de que a minha existência — após uma interrupção às minhas aspirações de vida conjugal e aos meus preparativos — recomeçava a seguir o seu curso, como um rio, que, desviado por qualquer acidente, volta ao seu velho leito e recomeça a correr como dantes, sem novidade nem mudanças. Podia ser que esta impressão proviesse do facto de, no meu desvairamento, olhar à minha volta com olhos, de ora em diante, incertos e que a multidão, as lojas, os veículos, me aparecessem pela primeira vez depois de tantos meses com o seu aspecto impiedosamente normal; nem bonitos, nem feios, nem interessantes, nem insignificantes, exactamente como eles eram, tal qual deviam aparecer aos bêbados depois de lhes ter passado a embriaguez. Mas podia ser também, e era o mais provável, que a sensação proviesse da verificação de que a vida normal não eram os meus projectos de felicidade, mas sim o contrário, quer dizer, todas as coisas contrárias aos planos e aos programas, todas as coisas que se revelavam defeituosas e imprevisíveis, que provocam decepção e dor. Se assim era — e parecia-me bem que seria —, qualquer dúvida que, após uma bebedeira de alguns meses, eu ainda tivesse nessa manhã tinha revivido.

Tal foi a única ideia que me inspirou a falsidade de Gino. Não sonhei sequer condená-lo e tive a impressão de nenhum verdadeiro rancor alimentar por ele. Eu não fora lançada numa armadilha sem cumplicidade da minha parte; a recordação do prazer que sentira nos braços de Gino era demasiado recente para que não encontrasse, senão justificação, pelo menos desculpas para a sua mentira. Pensava que, cego pelo desejo, ele fora mais fraco que mau; que a falta, se a havia, estava na minha beleza, que fazia andar à roda a cabeça dos homens e os fazia esquecer todos os escrúpulos e o dever. Gino no fim de contas não era mais culpado que Astárito, salvo que ele recorrera à mentira, ao passo que Astárito preferira a chantagem. Os dois amavam-me tanto quanto era possível; certamente que, se tivessem podido, eles teriam usado, para me possuir, de meios lícitos e ter-me-iam assegurado a modesta felicidade que eu punha acima de tudo. Mas a fatalidade quisera que com a minha beleza eu tentasse os homens que não me podiam dar essa felicidade. Infelizmente, se era verdade que ele tinha sido realmente culpado, era bem certo que havia uma vítima, e que essa vítima era eu.

Pode ser que esta maneira de sentir pareça fraca depois de uma traição como a de Gino. Mas cada vez que eu era ofendida — e lembro-me de o ser muitas vezes pela minha pobreza, a minha inocência e o meu isolamento — experimentava sempre o desejo de desculpar o ofensor e esquecer o agravo o mais depressa possível. Se a ofensa determina em mim qualquer mudança, essa mudança não se manifesta nem na minha atitude nem no meu aspecto exterior: actua mais profundamente na minha alma, que se fecha mais, tal como uma carne sã com uma boa circulação sanguínea consegue por si, depois do ferimento, cicatrizar mais depressa. Mas as cicatrizes ficam: e as mudanças, embora inconscientes, da alma são sempre definitivas.

Foi o que me aconteceu com Gino. Não senti nem sequer um momento de rancor contra ele, mas compreendi que em mim própria muitas coisas se tinham subvertido e quebrado para sempre: a minha estima por ele, a minha esperança de arranjar uma família, a minha vontade de não ceder nem a Gisela nem a minha mãe, a minha fé religiosa, ou pelo menos o género de fé que tivera até ali: comparei-me a uma das minhas bonecas do tempo em que eu era rapariguinha: depois de as ter amachucado e martirizado durante todo o dia, a sua cara risonha e rosada ficava intacta e eis que um ruído de molas partidas vinha de dentro do seu corpo, com um chocalhar de mau agouro. Virava-as de cabeça para baixo, e então, pelo pescoço, via cair fragmentos de porcelana, as molas e as peçazinhas do mecanismo que as faziam falar, mexer os olhos, e também misteriosos bocadinhos de madeira e de fazenda dos quais nunca consegui descobrir a utilidade.