Aturdida mas tranquila, entrei em casa e fiz de tarde as mesmas coisas que habitualmente executava, sem dizer a minha mãe o que se tinha passado, não lhe confiando as conseqüências que esse facto me traria. Apercebi-me de que era impossível levar a dissimulação ao ponto de trabalhar no meu enxoval como nos outros dias; pegando nas peças prontas e nas que ainda tinha por acabar fui fechá-las à chave no armário do meu quarto. Minha mãe notou a minha tristeza, coisa rara em mim, que sou por hábito estouvada e alegre; mas disse-lhe que estava fatigada e era verdade. Ao entardecer, enquanto minha mãe cosia à máquina, larguei a minha costura, fui para o meu quarto e estendi-me em cima da cama. Reparei que olhava os meus móveis já pagos, e por mim, graças ao dinheiro de Astárito, com olhos bem diferentes dos de outrora, sem alegria e sem esperança. Não sentia dor, mas simplesmente a lassidão e a indiferença que se experimentam depois de um grande esforço completamente inútil. De resto estava fisicamente cansada; tinha os membros partidos. Invadiu-me um grande desejo de repousar.
Pensando vagamente nos meus móveis e na impossibilidade de agora em diante os usar como esperava, adormeci quase a seguir, deitada vestida sobre a minha cama. Dormi talvez umas quatro horas, com avidez, com um sono que me pareceu triste e sombrio; acordei muito tarde; chamei minha mãe com voz forte, do fundo da obscuridade que me rodeava. Ela acorreu logo e disse-me que não me tinha acordado porque eu estava a dormir um sono tranquilo e reparador.
— Há mais de uma hora que o jantar está pronto — continuou, permanecendo de pé, olhando-me. — Que queres fazer? Vens comer ou não?
— Não me apetece levantar! — respondi cobrindo os olhos com o braço porque a luz me feria a vista. — Porque não me trazes o jantar aqui?
Ela saiu e voltou logo a seguir trazendo o habitual jantar num tabuleiro. Pousou-o na borda da cama; levantei-me e comecei a comer molemente, apoiada no cotovelo. Minha mãe ficou de pé a olhar-me. Mas às primeiras garfadas deixei de comer e caí outra vez sobre a almofada.
— Então não comes mais? — perguntou-me minha mãe.
— Não tenho fome.
— Não te sentes bem?
— Estou bem.
— Então vou levar tudo outra vez — resmungou. Levantou o tabuleiro da cama e pousou-o sobre a mesa, ao pé da janela.
— Não me acordes amanhã de manhã — disse-lhe. passado um momento.
— Porquê?
— Porque resolvi não ser mais modelo; a gente cansa-se muito e ganha pouco.
— Mas então que vais fazer? — perguntou-me, inquieta.Eu não te posso sustentar!… Já não és criança e custas caro! Além disso, há muitas despesas… O enxoval…
Começava já a choramingar e a lamentar-se; então, sem tirar o braço da cara, articulei lenta e penosamente:
— Não me aborreças agora. Está sossegada, que dinheiro não vai faltar!
Seguiu-se um grande silêncio.
— De nada precisas? — acabou por perguntar, mortificada e zelosa, como uma criada de quarto a quem tivessem repreendido por excesso de familiaridade e quisesse fazer-se perdoar.
— Sim, faz-me um favor… Ajuda-me a despir… estou ainda tão cansada e com tanto sono!
Ela obedeceu. Sentando-se na cama começou por me tirar os sapatos e as meias, que atirou para uma cadeira aos pés da cama. Depois despiu-me o vestido e a combinação e ajudou-me a vestir a camisa de dormir. Eu conservava os olhos fechados.
Depois de estar debaixo da roupa, enrolei-me, puxei o lençol e tapei a cabeça com ele. Ouvi minha mãe dar-me as boas-noites do limiar da porta depois de ter apagado a luz, mas não lhe respondi. Adormeci de novo e dormi toda a noite e até a uma hora avançada do dia.
Nessa manhã devia ir ao meu encontro habitual com Gino; mas ao acordar apercebi-me de que não desejava vê-lo enquanto a minha dor não tivesse passado, enquanto não estivesse em estado de considerar a sua traição com objectividade e desprendimento, como se fosse um facto sucedido, não a mim, mas a qualquer outra pessoa. Desconfiava, e continuei sempre a desconfiar, das coisas que se fazem e se dizem sob um impulso de um sentimento, e em particular (era o meu caso) quando esse sentimento não era de simpatia e de amizade. Com toda a certeza que já não gostava de Gino; mas não queria odiá-lo, porque pensava que juntaria ao prejuízo que ele me causara com a sua traição um sentimento desagradável que me mancharia a alma e seria indigno de mim.
Nessa manhã, de resto, experimentava uma estranha preguiça, quase voluptuosa, e sentia-me menos triste que na noite anterior. Minha mãe saíra muito cedo e eu sabia que não voltaria antes do meio-dia. Deixei-me ficar debaixo da roupa: foi o primeiro prazer ao iniciar esta nova fase da minha vida, que eu queria unicamente agradável. Para mim, que me tinha levantado muito cedo durante toda a minha vida, mandriar na cama deixando o tempo correr era um verdadeiro luxo. Durante muito tempo privara-me dele; mas agora estava bem decidida a fazê-lo sempre que me apetecesse. E pensava que assim seria com todas as coisas às quais a minha pobreza e os meus sonhos de vida regular e familiar me tinham até então obrigado a renunciar. Imaginava que amava o amor, que amava o dinheiro, que amava as coisas que se podem obter com ele; e de ora em diante todas as vezes que se me proporcionasse ocasião não me privaria nem do amor, nem do dinheiro, nem das coisas que com o dinheiro pudesse obter. Não se julgue, porém, que pensava nestas coisas enraivecida, por ressentimento ou por espírito de vingança. Muito pelo contrário, pensava nelas com doçura; acalentava a ideia com alegria. Todas as situações, mesmo as mais desagradáveis, tem o seu lado bom. Perdera, de momento pelo menos, o casamento e as modestas vantagens que prometera a mim própria, mas em compensação readquirira a liberdade. É verdade que as minhas aspirações mais íntimas não tinham mudado; mas a vida fácil agradava-me muito, e a imagem desta perspectiva escondia o que representava de tristeza e de resignação nas minhas novas decisões. Os sermões da minha mãe e de Gisela começavam a produzir os seus frutos. Sempre, mesmo levando uma vida virtuosa, eu sabia que bastava querer para que a minha beleza me proporcionasse tudo o que eu desejasse.
Nessa manhã, pela primeira vez, considerava o meu corpo um meio cómodo de conseguir os objectivos que o trabalho sério nunca me permitiria alcançar.
Estes pensamentos ou, melhor, estes sonhos fizeram passar a manhã num relâmpago e admirei-me de ouvir os sinos da igreja vizinha anunciarem o meio-dia e vi um grande raio de sol que se infiltrava pela janela e pousava na minha cama. Tudo, como a minha preguiçosa manhã, os sinos e o raio de sol, me parecia um luxo inesperado e precioso. Nesse momento as belas senhoras ricas que habitavam nas casas iguais à dos patrões de Gino deviam mandriar assim e sonhar nas suas camas escutando os mesmos sinos e olhando com o mesmo espanto o mesmo raio de sol. Foi com a sensação de já não ser a Adriana necessitada e esfomeada do bairro, mas uma Adriana diferente, que por fim me levantei da cama para tirar a camisa de dormir diante do espelho do guarda-fato. Olhei-me toda nua e compreendi o orgulho da minha mãe quando dizia ao pintor: “Olhe este peito! Estas pernas! Estas ancas!” Pensei em Astárito, que o desejo destes seios, destas pernas e destas ancas fazia mudar de carácter, de maneiras e até de voz, e disse a mim própria que com certeza encontraria outros homens que para gozar o meu corpo me dariam muito dinheiro, até talvez mais do que ele.
Indolentemente, como me impunha a minha nova disposição, vesti-me, tomei um café e saí. Entrei um bar próximo de casa e telefonei para casa dos patrões de Gino. Ele tinha-me dado o número com a recomendação, tipicamente servil, de não o usar senão quando fosse estritamente necessário, porque os patrões não gostavam de ter o telefone impedido pelo pessoal. Primeiro falei a uma mulher que devia ser criada de quarto. A seguir veio Gino. Ele perguntou se eu não estava doente, e não pude deixar de sorrir ao reconhecer nesta solicitude a perfeição, inteiramente falsa, que contribuíra para me induzir em erro.