Experimentei nesse momento uma grande amizade por Gisela e senti-me reconfortada. Os seus “deixa-me agir” tinham soado aos meus ouvidos com o acento de segurança das promessas maternais e amigas de acudir o mais de pressa possível às minhas necessidades. Apercebi-me com toda a clareza de que o que levava Gisela a ajudar-me, mais do que uma verdadeira amizade, era, como na história de Astárito, o desejo, talvez inconsciente, de me ver nas mesmas condições que ela. Mas ninguém faz nada por nada, e como, por coincidência, a inveja de Gisela vinha ao encontro dos meus interesses, nenhum motivo tinha para recusar a sua ajuda, unicamente porque a sabia interessada.
Estava apressada porque já era tarde para o encontro com o seu “noivo”. Saímos do quarto e descemos às escuras a escada estreita e íngreme da sua velha casa. Na escada, possuída pela sua excitação e talvez também pelo desejo de diminuir a amargura da minha desilusão, mostrando-me que não estava só na minha infelicidade, confiou-me:
— E depois, sabes… começo a crer que Ricardo me quer fazer o mesmo que Gino te fez a ti.
— Ele também é casado? — perguntei ingenuamente.
— Não, isso não; somente, faz-me cenas… tenho a impressão de que se quer pôr a fugir… Mas eu já me expliquei: “Meu caro, não preciso de ti para coisa alguma; se queres ficar fica, mas se não queres podes ir-te embora!”
Nada disse, mas pensei que havia uma grande diferença entre nós, mesmo até nos encontros dela e Ricardo e nos meus com Gino. Ela, no fundo, nunca tivera uma desilusão sobre a seriedade de Ricardo nem tinha escrúpulo em enganá-lo de tempos a tempos; enquanto que eu esperava com toda a força da minha alma inexperiente vir a ser mulher de Gino e ser-lhe sempre fiel; não podia chamar-se traição ao que se havia passado em Viterbo com Astárito, ameaçada com a sua chantagem.
Mas pensava que ela se ofenderia se eu lhe dissesse isto; não abri a boca. Na soleira da porta marcou-me encontro para o dia seguinte numa pastelaria, recomendando-me que fosse pontual, porque ela provavelmente não estaria sozinha. E foi-se embora.
Sentia que devia contar o que se passava a minha mãe, mas não tinha coragem. Minha mãe gostava realmente de mim. Ao contrário de Gisela, que não via na traição de Gino senão o triunfo das suas ideias e nem sequer tentava disfarçar a sua cruel satisfação, ela experimentaria mais dor que alegria ao verificar que no fim de contas tivera razão. No fundo não desejava senão a minha felicidade; pouco lhe importava o meio pela qual a alcançasse: somente estava convencida de que Gino não ma daria. Depois de muitas hesitações, acabei por decidir nada lhe dizer. Sabia que no dia seguinte, à tarde, os meus actos lhe abririam melhor os olhos que quaisquer palavras. Reconheci que era uma maneira brutal de lhe revelar a grande mudança que se operara na minha vida; mas o que me agradava era que desta maneira evitaria uma quantidade de explicações, de reflexões e de comentários: pelo menos todo o género de explicações, de reflexões e de comentários em que Gisela se mostrara pródiga quando lhe contara a traição de Gino. Na realidade eu experimentava uma espécie de repugnância em falar no casamento; desejava falar nele o menos possível e preparar as coisas de maneira que os outros não me tocassem no assunto.
No dia seguinte, para que minha mãe não me aborrecesse se suspeitasse de alguma coisa, fingi ter um encontro com Gino e passei toda a tarde fora. Para o meu casamento mandara fazer um fato de saia e casaco cinzento, que contava vestir depois da cerimónia. Era o meu vestido mais bonito: hesitei em pô-lo, mas pensei que acabaria por estreá-lo um dia, que não seria nem mais puro nem mais feliz; que, por outro lado, os homens julgam pelas aparências e que era preciso apresentar-me o melhor possível para obter mais proventos: afastei todos os escrúpulos. Vesti-o pois, mas não sem remorsos — o meu lindo vestido, que, recordando-o agora, era bem modesto e bastante feio, como todos os meus fatos de então —, penteei-me com cuidado e pintei-me, mas não mais do que o costume. A propósito deste último pormenor, observo que nunca percebi a razão por que as mulheres da minha profissão pintam a cara como se fossem máscaras de Carnaval. Porque a vida que levam as torna muito pálidas? Talvez porque julguem que se não se pintarem desta maneira violenta não chamam a atenção dos homens e não mostram que são fáceis de abordar? Eu, por mais que me fatigue e me deite tarde, tenho sempre a pele morena e sã, e posso dizer, sem falsa modéstia, que a minha beleza bastou sempre, sem pintura, para fazer voltar os homens quando passo na rua. Não é pelo rouge nem pelo louro do trigo que eu chamo a atenção dos homens, mas — muitos mo têm dito — pela serenidade e pela doçura do meu rosto, pelo sorriso que mostra os meus dentes perfeitos e pelo sedoso dos meus cabelos castanhos e ondulados. As mulheres que descoloram o cabelo e se pintam não reparam que os homens dão-se conta no primeiro momento de como elas são e experimentam uma espécie de antecipada desilusão. Eu, tão natural e simples, deixei-lhes sempre uma dúvida sobre a minha verdadeira personalidade, dando-lhes desta maneira a ilusão de uma aventura que eles procurassem mais do que a pura satisfação dos sentidos.
Uma vez vestida e arranjada, fui ao cinema e vi passar duas vezes a mesma fita. Quando saí do cinema era já noite; fui directamente à pastelaria onde tinha marcado encontro com Gisela.
A casa não era uma daquelas leitarias modestas onde habitualmente nos encontrávamos com Ricardo, mas uma pastelaria elegante, onde eu punha os pés pela primeira vez. Compreendi que a escolha deste local fora feita com a intenção de elevar o preço dos meus favores. Estes ardis e ainda outros de que falarei a seguir podem, com efeito, levar as mulheres da minha espécie, quando jovens e bonitas, e que os usem inteligentemente, ao bem-estar estável que é o alvo de todas. Mas poucas se servem deles e eu nunca pertenci a esse número. A minha origem popular fez-me sempre desconfiar dos locais luxuosos; nos cafés burgueses senti-me sempre pouco à vontade; envergonhava-me de sorrir aos homens ou de os olhar disfarçadamente; tinha a impressão de que a luz demasiada me expunha num pelourinho. Pelo contrário, senti sempre uma profunda e afectuosa atracção pelas ruas da minha cidade, com as suas nobres construções, as suas igrejas, os seus monumentos, as suas lojas e os seus portais, que as tornam mais belas e acolhedoras que qualquer sala de restaurante ou pastelaria. Sempre gostei de descer à rua à hora do passeio, ao pôr do Sol, caminhar lentamente olhando as montras iluminadas e ver a noite escurecer lentamente o céu e os telhados. Sempre apreciei seguir por entre a multidão, ouvir, sem me voltar, as ofertas de amor que os transeuntes, os mais imprevistos. numa súbita exaltação dos sentidos, se atreviam a murmurar-me às vezes; sempre gostei de subir e descer a mesma rua até à saciedade, ficar sem forças mas continuar com espírito ainda ávido e fresco como numa feira, onde as surpresas nunca se esgotam. O meu salão, o meu restaurante, o meu café, foram sempre a rua. Suponho que o facto de ter nascido pobre deve ter tido influência nestas minhas predilecções; sabe-se que os pobres se divertem com pouco dinheiro, repassando os olhos pelas montras das lojas, onde nada podem comprar, e as fachadas das belas casas, onde nunca morarão. Deve ser pelo mesmo motivo que amei sempre as igrejas, tão numerosas em Roma, abertas para o povo e luxuosas para todos e onde, por entre mármores, ouros e decorações preciosas, o cheiro acre e humilde da pobreza é, por vezes, mais forte do que o do incenso.
Naturalmente os ricos não passeiam pelas ruas, não vão à igreja: quando muito atravessam a cidade de automóvel, recostados sobre almofadas e lendo o jornal. Preferindo a rua a qualquer outro lugar, interditei a mim mesma os encontros nos sítios que Gisela me marcaria — em troca dos meus gostos mais predilectos. Este sacrifício nunca o quis fazer; todo o tempo que durou a minha camaradagem com Gisela o assunto foi objecto de discussões encarniçadas. Gisela não gostava da rua; as igrejas nada lhe diziam; a multidão só lhe inspirava repugnância e desprezo. O que ela mais apreciava eram os restaurantes de luxo, onde os criados espiam com ansiedade os mais simples gestos dos seus clientes, os dancings modernos, com músicos de uniforme e dançarinos de fato de noite. Nestes lugares, ela ficava outra; os seus gestos, as suas atitudes, até a sua voz mudavam. Fingia ser uma mulher bem; era o fim que almejava e que conseguiu mais tarde até certo ponto, como se poderá ver. O aspecto curioso do seu sucesso final foi que a pessoa destinada a satisfazer as suas ambições não a encontrou nos locais de luxo, mas graças a mim e precisamente na rua, que ela odiava tanto.