Mas ele respondeu taco a taco:
— Se te dou muito não será para fazer uma boa acção… Nunca faço boas acções… será por seres uma bonita rapariga e por me teres feito passar uma noite agradável.
— Como quiseres! — disse-lhe encolhendo os ombros.
— Tudo tem o seu valor, e tudo deve ser pago segundo o seu valor — continuou tirando o dinheiro da carteira. As boas acções não existem. Tu deste-me certas coisas, de uma qualidade superior às que me tinham dado antes… por exemplo, Gisela… As boas acções nestes casos não contam… Outro conselho! Nunca digas: dá-me o que te apetecer! Deixa fazer isso aos vendedores ambulantes. A mim quando me dizem “faça você o preço” sinto-me sempre tentado a dar menos do que devo pagar.
Fez uma careta significativa e estendeu-me o dinheiro. Como Gisela me dissera, era generoso; a soma ultrapassava as minhas previsões. Senti de novo, pegando-lhe, o sentimento de cumplicidade e sensualidade que me inspirara o dinheiro de Astárito no decurso do passeio a Viterbo. E pensei que isso denotava em mim urna vocação, que eu devia ter de facto jeito para esta espécie de ofício, mesmo se o meu coração aspirava a coisas diferentes.
— Obrigada — disse-lhe.
E, sem quase dar por isso, por gratidão, beijei-o de boa vontade.
— Obrigado eu! — respondeu dispondo-se a retirar. Dei-lhe a mão e conduzi-o, no escuro, através do vestíbulo, na direcção da porta. Durante um momento, logo que fechei a porta do meu quarto e antes de abrir a da casa, caminhámos numa obscuridade completa. E então, não sei que intuição quase física me revelou que minha mãe se encontrava em qualquer canto do vestíbulo enquanto eu vagueava com Jacinto. Ela tinha-se escondido sem dúvida atrás da porta, ou num canto, entre o armário e a parede e esperava que Jacinto saísse. Lembrei-me daquela vez que ela fizera a mesma coisa, na noite em que chegara atrasada depois de ter estado com Gino em casa dos patrões dele e assaltou-me um grande nervosismo à ideia de que, como daquela vez, depois de Jacinto sair ela me saltasse em cima, me agarrasse os cabelos, me atirasse para cima do canapé da sala grande e me enchesse de bofetadas. Sentia-a no escuro; parecia-me quase vê-la; sentia uma impressão nas costas como se tivesse as suas garras atrás da minha cabeça prontas a arrepelar-me os cabelos. Segurava Jacinto pela mão e na outra mão guardava o dinheiro. Lembrei-me de o meter entre os dedos da minha mãe logo que ela me quisesse saltar em cima. Seria uma maneira silenciosa de lhe lembrar que nunca cessara de me instigar a ganhar dinheiro e também uma tentativa de a captar pela avidez — a sua paixão dominante — e assim fechar-lhe a boca. Entretanto tinha aberto a porta.
— Então até qualquer dia… Telefonarei a Gisela — disse-me Jacinto.
Vi-o descer a escada, com os seus largos ombros e os seus cabelos brancos cortados à escovinha, agitando a mão sem olhar para trás, em sinal de cumprimento — e fechei a porta. Imediatamente, como previra, minha mãe surgiu do escuro junto de mim. Mas não me agarrou pelos cabelos, como julguei: pelo contrário de uma maneira desajeitada, que de princípio não compreendi, fez uma tentativa para me beijar. Fiel ao meu plano, procurei a sua mão e introduzi-lhe o dinheiro. Mas ela recusou-o; o dinheiro caiu no chão; ai, o encontrei no dia seguinte de manhã quando saí do meu quarto. Tudo isto com um pouco de angústia de parte a parte, mas sem que qualquer de nós abrisse a boca.
Entrámos na sala grande e sentei-me ao cantinho da mesa. Minha mãe sentou-se na minha frente e olhou-me. Parecia ansiosa e eu estava embaraçada. Disse-me de repente:
— Sabes que enquanto estiveste no quarto houve um certo momento em que tive medo?
— Medo de quê? — perguntei-lhe.
— Não sei — respondeu-me. — Primeiro senti-me só… tive frio… E depois já não me sentia eu, tudo girava à minha volta como quando se bebe, sabes! Tudo me parecia estranho! Pensava: isto é uma mesa, isto é uma máquina de costura… Mas não me chegava a convencer de que era realmente uma mesa, a cadeira, a máquina de costura… Também tive a sensação de que já não era eu… dizia: sou uma velha costureira… Tenho uma filha que se chama Adriana… mas não me convencia… Para me assegurar de que assim era pus-me a pensar no que tinha sido quando era pequenina, depois quando tinha a tua idade, quando me casei, quando tu nasceste… Então tive medo, porque tudo passou como se tivesse sido ontem; de nova, que era, cheguei bruscamente a velha sem dar por isso… E quando eu morrer — concluiu com esforço olhando-me — será como se nunca tivesse existido.
— Porque pensas nessas coisas? — pronunciei lentamente. — Ainda és nova… Que necessidade tens de pensar na morte?
Pareceu não me ter ouvido e continuou com a mesma énfase, que me fazia pena e me parecia falsa:
— Digo-te que tive medo! Pus-me a pensar: se uma pessoa não tem mais vontade de viver, deve continuar a estar neste mundo à força? Não digo que se mate; para se matar é preciso coragem; não, mas apenas deixar de querer viver como se deixa de querer comer, ou de querer andar… Pois bem! Juro-te por alma do teu pai… Já não queria viver mais!
Tinha os olhos cheios de lágrimas e os lábios trémulos. Eu estava quase a chorar também, sem saber porque, e levantei-me, beijei-a e fui sentar-me com ela no canapé, ao fundo do quarto. Ficámos uns momentos a chorar nos braços uma da outra. Sentia-me desnorteada, estava muito cansada, e as palavras incoerentes da minha mãe, com á sua ilógica, aumentavam o meu desnorteamento. Mas fui a primeira a recompor-me, porque no fim de contas eu não chorava senão por simpatia. Há muito tempo que deixara de chorar por mim!
— Então! Então! — comecei a dizer-lhe, dando-lhe palmadas nas costas.
— Digo-te, Adriana, já não tenho vontade de viver! — repetia-me chorando.
Afaguei-lhe o ombro sem dizer nada, deixando-a chorar à vontade. Mas pensava, por minha vez, que as suas palavras eram a clara expressão do seu remorso. É certo que sempre me tinha mostrado o exemplo de Gisela e recomendara que me vendesse o mais caro possível. Mas entre dizer e fazer há uma boa diferença. Ter trazido um homem a casa, sentir que lhe punha o dinheiro na mão, era certamente para ela um duro golpe. Agora, que tinha diante dos olhos o resultado da sua educação, não podia deixar de sentir-se horrorizada. Mas ao mesmo tempo havia nela uma espécie de incapacidade para reconhecer que se tinha enganado; talvez também uma amarga satisfação ao verificar que se enganara. Tanto assim que, em vez de me dizer francamente “Procedeste mal… não recomeces”, preferiu falar de coisas que nada tinham a ver comigo, da sua vida, do seu desejo de deixar de existir. Tive muita vez ocasião de observar pessoas que no mesmo momento em que se abandonam a uma acção que sabem ser repreensável, procuram defender-se e resgatar-se discorrendo acerca de coisas mais elevadas, susceptíveis de as rodear, a seus próprios olhos e aos dos outros, de uma aura de desinteresse e de nobreza bem longe da acção que praticam — ou ainda, para voltar ao caso da minha mãe —, daquilo que deixam os outros praticar. Somente, a maior parte actua com inteira consciência; minha mãe, pelo contrário, coitada, fá-lo sem dar por isso, como o seu coração e as circunstâncias a inspiram.
Portanto, a sua frase sobre a vontade de não viver parecia-me justa. Pensava que também eu, logo que descobri a traição de Gino, desejei deixar de viver. Mas o meu corpo continuava a viver por sua conta, indiferente à minha vontade. Este peito, estas pernas, estas ancas, que tanto agradavam aos homens, continuavam vivas; a minha natureza continuava a desejar o amor, mesmo sem que eu o quisesse. Estendida na minha cama, tinha decidido deixar de viver, não acordar no dia seguinte de manhã; enquanto dormia. o meu corpo continuava vivo, o sangue corria-me nas veias. o estômago e os intestinos digeriam, os pêlos despontavam-me nas axilas, onde os tinha rapado, as unhas cresciam, a pele molhava-se de suor e as forças restauravam-se. E de manhã cedo, sem que o quisesse, as pálpebras abriam-se e os meus olhos viam, por mal deles, esta realidade que detestavam. Em suma, percebia que, a despeito do meu desejo de morrer, estava ainda viva e devia continuar a viver. E portanto — concluía eu —, é preciso sujeitarmo-nos a viver e não pensar mais nisso. Nada disto disse a minha mãe, porque sabia que estas ideias não eram menos tristes que as suas e não a consolariam. Mas quando me pareceu que deixara de chorar aproximei-me dela e disse-lhe: