Minha mãe pensava muito no meu futuro e não tardou a mostrar-se descontente com a minha actividade de modelo. Segundo ela, o que eu ganhava era uma verdadeira miséria. Além disso, tanto os pintores como os seus amigos eram uns pobretões, e não seria com certeza nos seus ateliers que eu conseguiria algumas relações úteis. De repente meteu-se-lhe na cabeça fazer-me bailarina. A sua cabeça estava sempre cheia de ideias ambiciosas, ao passo que eu, como já tive ocasião de dizer, sonhava com um marido, filhos e uma vida simples e tranquila. A ideia da dança veio à minha mãe num dia em que recebera uma encomenda de camisas para o director de uma companhia de variedades que se exibia num cinema entre dois filmes. Isto não quer dizer que minha mãe pensasse que a profissão de bailarina fosse por si própria muito lucrativa; mas, conforme afirmava constantemente, umas coisas levam às outras e quem se exibe num palco mais tarde ou mais cedo acaba por encontrar um homem decente.
Um dia declarou-me que falara com o director e que este me queria conhecer. Fomos, assim, uma manhã ao hotel em que ele e os seus artistas estavam hospedados. O hotel — recordo-me perfeitamente — ficava num prédio muito grande e muito velho perto da estação. Era quase meio-dia quando lá chegámos, mas os corredores ainda estavam em profunda obscuridade. O cheiro humano que saía de todos aqueles quartos era tão forte e tão denso que chegava a dificultar a respiração. Percorremos vários desses corredores e acabámos por entrar numa espécie de antecâmara sombria, onde três bailarinas se exercitavam ao som de um velho piano desafinado. Este piano estava arrumado num ângulo da parede junto da porta de vidro fosco das retretes; no canto em frente havia um enorme montão de lençóis sujos. O pianista, um velho pálido, tocava de cor; deu-me a impressão de pensar noutra coisa e talvez até de estar a dormir. As três bailarinas eram jovens; tinham despido os corpetes, conservando as saias de baixo, e dançavam com o peito e os braços nus. Seguravam-se umas às outras pela cintura, e quando o pianista atacava uma ária caminhavam na direcção do montão de roupa suja, levantando as pernas e passeando-as num movimento de conjunto, primeiro para a direita e depois para a esquerda; depois com uma atitude provocante, extremamente bizarra neste lugar sombrio e lúgubre, imprimiam às nádegas uma oscilação vigorosa. Quando olhei para elas e as vi bater com os pés no chão com um barulho rítmico, forte e surdo, senti que me faltava a coragem. Não ignorava que, apesar das minhas pernas longas e robustas, eu não possuía a menor queda para a dança. Tinha recebido lições, juntamente com duas amigas, numa escola do bairro. As minhas camaradas haviam conseguido em poucos dias apreender o ritmo e mexer as pernas e as ancas como duas bailarinas bem treinadas; eu, pelo contrário, parecia feita de chumbo. Isto dava-me a impressão de não ser feita como as outras raparigas e julgava existir em mim qualquer coisa de maciço e de pesado que a música não conseguia atingir. Além disso, nas raras vezes em que tinha dançado, o facto de sentir um braço apertar-me a cintura dava-me uma tal sensação de moleza e de abandono que eu arrastava as pernas em lugar de as mover. O pintor bem mo dissera: “Tu, Adriana, devias ter nascido três ou quatro séculos mais cedo… Estava na moda as mulheres como tu. Hoje, que a moda é a magreza, tu és como um peixe fora de água. Dentro de quatro ou cinco anos estarás bela e forte como Juno.” Nesta última parte não acertou porque os cinco anos passaram e eu não estou nem mais gorda nem mais forte que nesse tempo. Mas quando me dizia que estava deslocada nesta época de mulheres magras tinha razão, e eu sofria com a minha incapacidade. Bem gostaria de emagrecer e de dançar como as outras raparigas. Mas por menos que comesse e por mais esforços que fizesse continuava maciça e imponente como uma estátua, e quando dançava era-me impossível obedecer ao ritmo rápido e saltitante da música moderna.
Disse tudo isto a minha mãe, porque tinha a certeza de que a nossa ida ao hotel seria um fiasco e queria evitar essa humilhação. Mas minha mãe desatou a gritar que eu era infinitamente mais bela do que todas as desgraçadas que se mostravam nos palcos, que o director daria graças a Deus pela sorte de poder incluir-me no seu grupo de artistas e outras coisas semelhantes. Minha mãe nada compreendia da beleza moderna; acreditava com inteira boa fé que quanto mais opulentos forem os seios e as ancas de uma mulher mais bela essa mulher será.
O director esperava-nos numa sala que dava para a antecâmara de que já falei; suponho que do sítio onde estava podia vigiar, pela porta aberta, o trabalho das bailarinas. Estava sentado numa poltrona ao lado da cama por fazer, e em cima desta tinha ainda a bandeja do pequeno-almoço, que acabara de tomar. Era velho e gordo, mas vestia-se com exagerado requinte e com uma elegância vistosa, que naquele quarto pobre e desleixado, mal iluminado e com a cama desfeita, assumia um aspecto singular e anacrónico. O seu rosto era corado, mas desconfiei que o pintava, porque debaixo do tom rosado das faces podiam ver-se como que placas irregulares de um moreno doentio. Usava monóculo, movia constantemente os lábios assoprando e descobrindo os dentes de uma brancura tão excessiva que se via imediatamente serem postiços. Estava sentado com o enorme ventre caindo-lhe para o meio das pernas; quando acabou de comer disse-me numa voz contrariada e quase gemebunda:
— Vamos, mostra-me as pernas!
— Mostra as pernas ao senhor director — repetiu a minha mãe com ansiedade.
Desde que trabalhava nos ateliers já não tinha vergonha… Mostrei as pernas conservando-me imóvel, arregaçando a saia com as duas mãos. As minhas pernas são verdadeiramente belas: longas, cheias e lisas, mas, um pouco acima dos joelhos, as coxas tomam um desenvolvimento insólito: são redondas e fortes e não cessam de alargar até ao ponto mais saliente das ancas.
O director abanou a cabeça e perguntou:
— Que idade tens tu?
— Completou dezoito anos em Agosto — respondeu prontamente minha mãe.
O director não respondeu. Levantou-se e dirigiu-se para um fonógrafo que se encontrava em cima da mesa, no meio de papéis e peças de roupa. Deu volta à manivela, escolheu um disco com cuidado e colocou-o no prato. Depois disse-me :
— Agora tenta dançar ao som desta música, mas mantendo a saia levantada.
— Ela só teve duas ou três lições de dança — explicou minha mãe.
Sabia perfeitamente que essa prova era decisiva, e conhecendo a minha falta de habilidade temia o resultado do exame.
Mas o director, depois de ter feito um gesto pedindo silêncio, fez rodar o disco e, também por gestos, convidou-me a dançar.
Comecei mantendo a saia levantada, como me tinha dito para fazer. Na realidade, a única coisa que fiz foi atirar as pernas para a direita e para a esquerda de um modo pesado e sem graça, dando-me perfeitamente conta de que nem sequer o fazia acompanhando o ritmo da música. O director tinha-se deixado ficar de pé junto do fonógrafo com os cotovelos apoiados na mesa, olhando para mim. De repente parou o aparelho e fechou-o. Voltou a sentar-se na sua poltrona e com um gesto expressivo indicou-nos a porta.
— Que foi? Não serve? — interrogou minha mãe, entre ansiosa e agressiva.
Ele respondeu sem sequer olhar para ela, ao mesmo tempo que remexia nos bolsos em busca da cigarreira.
— Não. Não serve.
Eu bem sabia que quando minha mãe falava com aquele tom de voz tentava provocar uma discussão. Para evitar isso puxei-a por um braço. Mas ela afastou-me com um safanão e, fixando no director um olhar chamejante, repetiu, já em voz mais forte: