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— Não serve? Não? E poderá saber-se porquê? Entretanto o director tinha encontrado os cigarros e procurava os fósforos.

Devido à sua gordura cada um dos seus gestos parecia custar-lhe um enorme esforço. Apesar de ofegante, foi com grande tranquilidade que respondeu:

— A tua filha nem tem físico de bailarina nem tem a menor queda para a dança. Por isso que não serve.

Como eu calculava, minha mãe desatou nas suas habituais considerações. Que eu era uma autêntica beleza, que tinha um rosto de Madona, que não havia pernas, nem ancas, nem seios mais belos do que os meus. Calmamente, continuando a fumar o seu cigarro, o director observava-a e esperava que ela se calasse. Depois disse na sua voz contrariada e um pouco chorona:

— Dentro de dois anos a tua filha poderá talvez dar uma boa ama de leite. Uma bailarina nunca!

O pobre homem não sabia de que extremos de violência minha mãe era capaz. O seu pasmo foi tão grande que deixou cair o cigarro e ficou de boca aberta. Minha mãe era magra e de aspecto frágil, de modo que ninguém compreendia onde ela ia buscar tanta cólera e uma voz tão forte. Atirou-lhe à cara, dirigidas a ele e às bailarinas que tínhamos visto no corredor, quantas injúrias sabia. Depois, agarrando nos cortes de seda que ele lhe confiara para ela fazer camisas, arremessou-os ao chão gritando:

— As suas bailarinas que lhe façam as camisas! Eu não lhes tocarei nem que mas pagasse a peso de ouro.

Isto era tão inesperado para o director que ele nada respondeu e ficou a olhar para minha mãe, estupefacto e congestionado.

Eu, entretanto, tentava arrastá-la dali para fora e quase chorava de vergonha e de humilhação. Consegui-o finalmente, e saímos do quarto sem que o director pronunciasse uma única palavra.

No dia seguinte contei esta aventura ao pintor, que se tinha tornado um pouco meu confidente. Ele riu com vontade do que o director dissera quanto às minhas aptidões para ama de leite e disse-me:

— Minha pobre Adriana. Já to disse várias vezes: o teu grande erro foi teres nascido no tempo presente; devias ter vindo ao mundo há quatro séculos. O que hoje é considerado defeito era então considerado qualidade e vice-versa. Do seu ponto de vista, o director tem razão. O público actualmente exige mulheres magras, louras, de seio pequeno, ancas estreitas e um rosto malicioso e provocante; tu, pelo contrário, és forte, morena, com um seio e umas ancas opulentas e um rosto doce e tranquilo. Não está na tua mão modificares a situação. Para mim tens precisamente o que necessito. Continua a ser modelo. Depois, um belo dia, casarás e terás muitos filhos parecidos contigo, morenos e gorduchos, com caras meigas e tranquilas.

— São essas precisamente as minhas ambições — respondi com energia.

— Muito bem — disse ele. — Agora inclina-te um bocadinho para o lado. Isso! Óptimo.

Este pintor queria-me bem à sua maneira, e se tivesse continuado a viver em Roma e a servir-me de confidente tenho a certeza de que me daria bons conselhos e muitas coisas que me aconteceram poderiam ter sido evitadas. Mas ele queixava-se constantemente de que não vendia os seus quadros e acabou por aproveitar a oportunidade de ter feito uma exposição em Milão para fixar residência naquela cidade.

Continuei a ser modelo como ele me aconselhara. Mas os outros pintores não tinham por mim a mesma amizade e eu não me sentia disposta a falar-lhes dos meus problemas nem da minha vida.

Nessa altura, aliás, muito mais imaginária do que real, feita de sonhos, de aspirações e de esperanças, visto que nada de extraordinário me acontecia.

2

Foi assim que continuei a ser modelo, apesar de minha mãe resmungar constantemente que por esse processo eu nunca chegaria a ganhar coisa que se visse. No decurso deste período da minha vida minha mãe esteve constantemente de mau humor, e, apesar de ela o não dizer claramente, eu bem compreendia que a causa da sua má disposição era eu. Não é esta a primeira vez que o digo: minha mãe contava com a minha beleza como se conta com um capital seguro. Para ela o ofício de modelo não passava de um ponto de partida; depois disto, segundo a sua expressão habitual, “uma coisa traria outra”. A continuação deste trabalho humilde e mal remunerado, ao mesmo tempo que a enchia de amargura, tornava-a rancorosa contra mim, como se o facto de eu não ser ambiciosa a privasse de lucros seguros.

Evidentemente que não me dizia isto. Mas dava-mo constantemente a perceber pelos seus modos desagradáveis, as suas alusões, os seus suspiros, os seus olhares melancólicos e outros meios de expressão igualmente significativos. Era uma espécie de chantagem constante, a razão pela qual muitas raparigas, fundamentalmente honestas, martirizadas sem piedade nem tréguas por mães ambiciosas e desiludidas, acabam por fugir de casa e entregar-se ao primeiro homem que encontaram, unicamente para se libertarem desse tormento. Eu bem sei que minha mãe fazia isto por amor de mim. Mas esse amor era como os dos aldeões para com as galinhas: no dia em que elas deixam de pôr ovos começam imediatamente a perguntar a si próprios se não terá chegado o momento de lhes torcer o pescoço e as meter na panela.

Como se é paciente e crédulo quando se é jovem! A minha vida nesse tempo era horrível e eu nem sequer tinha consciência disso. O dinheiro que me rendiam as minhas longas, enfadonhas e fatigantes sessões de pose nos ateliers era por mim integralmente entregue em casa, e o tempo que não passava nua, entorpecida e dolorida pela imobilidade, para que me pintassem e desenhassem, passava-o em casa a coser à máquina, de costas dobradas e com os olhos fitos na agulha ajudando minha mãe no seu trabalho. À noite continuava a costurar até tarde, para me levantar mal começava a amanhecer, pois os ateliers ficavam longe e as sessões começavam cedo. Mas antes de partir para o trabalho fazia a minha cama e ajudava minha mãe a arrumar a casa. Eu era realmente infatigável, submissa, paciente e ao mesmo tempo sempre calma, alegre e tranquila, a alma isenta de inveja, de rancor ou de ciúme, cheia dessa doçura e dessa gratidão sem motivo que são a florescência espontánea da juventude. Não me apercebia da desoladora fealdade da minha casa. Uma enorme sala servia de atelier, com uma grande mesa ao centro, coberta de trapos. Havia mais trapos pendurados nos pregos colocados nas paredes sombrias e desbotadas e algumas cadeiras desmanteladas. Um quarto onde eu dormia com minha mãe numa cama de casal; mesmo por cima da minha cabeça, quando estava deitada, o tecto tinha uma grande mancha de humidade; quando estava mau tempo chovia-nos em cima. Tínhamos uma pequena cozinha escura recheada de pratos e panelas, que minha mãe por desmazelo nunca chegava a lavar completamente. Não me apercebia da vida de sacrifício que levava, sem divertimentos, sem amor, sem amizade. Quando penso na rapariga que eu era, na minha inocência e na minha bondade, sinto uma grande compaixão por mim mesma, impotente e entristecida, a mesma que se sente quando, ao ler-se um romance, desejamos evitar a uma personagem simpática as desgraças que lhe vão acontecer, sabendo ao mesmo tempo que as não poderemos impedir. A vida é assim: a bondade, a inocência, nada valem para os homens. E não será talvez um dos seus menos dolorosos mistérios que as melhores qualidades que a natureza nos deu — e todos entusiasticamente louvam — não sirvam senão para nos tornar mais desgraçados ainda.

Nesta altura acreditava que a minha aspiração de casar e ter uma família podia vir a ser satisfeita um dia. Todas as manhãs tomava o eléctrico numa grande praça muito perto da minha casa, para a qual dava, entre outros prédios, uma construção baixa encostada às muralhas e que servia de garagem. A essa hora estava todos os dias à porta da oficina um rapaz que lavava e limpava o seu carro e me olhava com insistência. Era moreno, com um ar finíssimo: nariz pequeno e direito, olhos negros, uma boca maravilhosamente bem desenhada e os dentes muito brancos. Parecia-se muito com um actor americano de cinema muito em voga naquele tempo; foi isso que me chamou a atenção. Primeiro tomei-o por uma pessoa de condição, porque estava bem vestido e tinha maneiras educadas e finas. Imaginei que o carro lhe pertencesse e ele fosse uma pessoa rica, um dos tais “cavalheiros respeitáveis” de que minha mãe tanto me falava. Por um lado ele atraiu-me, mas pensava nele apenas quando o via; depois ia para o atelier e a sua lembrança saía-me do espírito. Mas não é menos verdade que sem dar por isso e apenas por causa das suas olhadelas ele me tivesse seduzido, porque uma manhã em que eu, no passeio, esperava o eléctrico, ouvi que me chamavam de uma maneira parecida com a que se usa para chamar os gatos; voltei-me e vi que ele me fazia sinais de dentro do carro. Com uma docilidade irreflectida da qual me admirava, não hesitei um instante em aproximar-me. Ele abriu a porta. Ao entrar reparei que a mão que pousava sobre o vidro aberto era grossa e rude; as unhas estavam sujas e partidas e o indicador estava amarelecido pelo fumo do tabaco, como têm os homens que exercem profissões manuais. Nada disse e mesmo assim subi.