Muito mais tarde, durante a noite, levantava-me apoiada no cotovelo e contemplava-o com uma intensidade da qual guardo, passado tanto tempo, uma recordação extraordinariamente precisa e dolorosa. Dormia de perfil, com a cara enterrada na almofada. O ar de dignidade vacilante que parecia querer conservar a todo o custo abandonara-o. Nos seus traços, que o sono tornava sinceros, nada mais restava do que a sua pouca idade, antes com uma ingenuidade e uma frescura impossíveis de definir do que com uma expressão que reflectisse qualquer qualidade ou inclinação particulares de alma. Mas lembrava-me de que o tinha visto ora malicioso, ora hostil e indiferente. ora cruel, ora cheio de desejo, e experimentava uma insatisfação triste e ansiosa, porque pensava que esta malícia, esta hostilidade, esta indiferença, este desejo, todas estas coisas que o personalizavam e que o distinguiam de mim e dos outros, partiam de um centro profundo que para mim ficava longínquo e secreto. Não desejava que ele me explicasse estas atitudes, desmontando-as e analisando-as por palavras, como se desmontam as peças de uma máquina. Desejaria conhecê-las nas suas raízes mais fundas por um simples acto de amor, e ainda o não tinha conseguido. O pouco que me escapava da sua pessoa era todo ele e o muito que não me escapava não tinha qualquer importância; não sabia que fazer. Gino, Astárito e mesmo Sonzogne estavam mais próximos de mim, conhecia-os melhor. Olhava-o e sentia a parte mais profunda de mim própria sofrer por não ter podido unir-se ao que ele tinha de mais profundo, como acabavam de unir-se os nossos corpos. Ela estava viúva e chorava amargamente esta ocasião perdida. Talvez, enquanto nos amávamos, tivesse havido um momento no qual ele se libertou e em que bastaria um gesto ou uma palavra para que eu pudesse entrar na sua alma e lá ficar para sempre. Mas não tinha sabido encontrar esse momento e agora era tarde: dormia e de novo se afastara de mim.
Quando assim o contemplava, abriu os olhos sem se mexer, com a cara enterrada de perfil na almofada e perguntou-me:
— Também dormiste?
A sua voz pareceu-me mudada, mais confiante e mais próxima. Eu esperava de repente que misteriosamente, durante o sono, a nossa intimidade tivesse aumentado.
— Não… estive a olhar para ti.
Guardou silêncio por um instante, depois disse:
— Tenho um favor a pedir-te… mas posso contar contigo?
— Que pergunta!
— Será preciso que me faças o favor de guardar por alguns dias na tua casa um pacote que te entregarei. Virei buscá-lo e talvez te traga outro.
Noutra ocasião, esta história dos pacotes teria excitado a minha curiosidade. Mas neste momento o que me interessava era ele e as nossas relações. Pensava que era mais uma ocasião para nos tornarmos a ver, que lhe devia agradar o mais que pudesse e que, se lhe fizesse perguntas, poderia arrepender-se e faltar ao prometido.
Respondi-lhe com ar despreocupado:
— Se é só isso o que queres…
Calou-se ainda durante muito tempo. Parecia reflectir. Depois insistiu:
— Então aceitas?
— Já te disse que sim.
— E não te interessa conhecer o conteúdo dos pacotes?
— Se não queres dizer — respondi esforçando-me por parecer desinteressada —, é porque tens razões para isso! Não to pergunto.
— Mas poderia ser alguma coisa perigosa; não sabes?
— Está bem! Tanto pior!
— Podia ser uma coisa roubada — continuou estendendo-se de costas, enquanto os olhos lhe brilhavam com uma expressão divertida e ingênua ao mesmo tempo. — Eu podia ser um ladrão.
Recordei-me de Sonzogne, que não só era ladrão como também assassino, e lembrei-me dos meus próprios roubos: a caixa de pó de arroz e o lenço de seda. Pareceu-me uma curiosa coincidência que ele quisesse passar por ladrão aos olhos de uma pessoa como eu, autêntica ladra, vivendo no meio de ladrões. Fiz-lhe uma carícia e disse-lhe com doçura:
— Não, tu não és um ladrão com certeza.
Irritou-se. O seu amor-próprio, sempre desperto, tomava a mal as coisas mais estranhas e imprevistas.
— Porquê? — disse-me. — Podia muita bem sê-lo.
— Não tens cara disso. Tudo é possível… mas realmente tu não pareces.
— Porquê? Que cara tenho eu?
— Tens cara daquilo que és… um rapaz de boa família, um estudante…
— Fui eu quem te disse que era estudante… Podia muito bem ser outra coisa qualquer… e é a verdade…
Já não o ouvia. Pensava que também eu não tinha cara de ladra e no entanto era uma ladra e desejava imenso dizer-lho. A sua curiosa atitude aumentava a minha tentação. Sempre pensara que roubar era um acto censurável. E eis que alguém não só não parecia censurar um tal acto, mas parecia encontrar nisso um aspecto positivo que para mim continuava misterioso. Hesitei um momento, depois disse-lhe:
— Tens razão. Penso que não és um ladrão porque estou convencida de que não o és; mas, quanto à cara, bem podias sê-lo. Nunca se tem a cara daquilo que se é. Eu, por exemplo… Tenho cara de ladra?
— Não — respondeu sem me olhar.
— E no entanto sou-o — acrescentei tranquilamente.
— Tu és?
— Sou.
— E que roubaste?
Tinha deixado a mala sobre a mesa-de-cabeceira. Peguei nela, tirei a caixa e mostrei-lha.
— Isto, numa casa aonde ia aqui há uns tempos, e, no outro dia, numa loja, um lenço que dei a minha mãe.
Não acreditou que fizesse estas revelações por vaidade. Na realidade, o que me levara a fazê-las fora um desejo de intimidade, de cumplicidade sentimentaclass="underline" à falta de melhor, a confissão de um delito pode aproximar e fazer amar. Vi-o tornar-se grave e olhar-me com ar concentrado, e de repente receei que ele me julgasse mal e tomasse a resolução de não me tornar a ver. Acrescentei depressa:
— Mas não julgues que estou contente por ter roubado. Pelo contrário, já decidi devolver a caixa… hoje mesmo. O lenço não o posso restituir… mas tenho tido remorsos e resolvi nunca mais o fazer.
Ao ouvir estas palavras, vi brilhar nos seus olhos a malícia que lhe era habitual. Olhou-me e desatou bruscamente a rir. Depois agarrou-me pelos ombros, atirou-me para cima da cama e começou outra vez a beliscar-me e a fazer-me cócegas traiçoeiramente, repetindo:
— Ladra, tu não passas de uma ladra, uma ladrazinha, uma grande ladra, uma enorme ladra, uma suja ladra… — com uma espécie de ternura sarcástica da qual eu não sabia se me deveria sentir vexada ou lisonjeada. Num certo sentido, a sua impetuosidade excitava-me e agradava-me. Era melhor do que a habitual, a mortal passividade.
Ria pois e o meu corpo mais se contorcia quanto mais cócegas ele me fazia, maldosamente, debaixo dos braços. Mas, torcendo-me e rindo até às lágrimas, via a sua cara, inclinada para mim, com uma espécie de crueldade, conservando uma expressão fechada e concentrada. Sem rir, parou bruscamente, como tinha começado. Deixou-se cair de costas sobre a cama e disse: