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— Eu, pelo contrário, não sou um ladrão… não, na verdade. Estes pacotes que te pedi para guardares não são o produto de um roubo.

Percebi que ele desejava muito dizer-me o que eles continham. E compreendia que, ao contrário do que se passara comigo, nele era sobretudo por vaidade. Uma vaidade muito parecida, no fundo, com a que levara Sonzogne a revelar-me o seu crime. Apesar de todas as suas diferenças, os homens têm muitas coisas comuns; em presença de uma mulher que eles amam, ou pelo menos com quem têm ligações amorosas, eles tendem sempre para ostentar a sua virilidade sob a forma de actos enérgicos e perigosos que fizeram ou que farão. Fiz notar a Jaime, com doçura:

— No fundo, morres por me contar o que há nesses pacotes.

— És uma idiota — disse-me, irritado. — Não me interessa fazê-lo. Somente devo pôr-te ao corrente do seu conteúdo para que possas decidir se me prestas este serviço ou não… Pois bem! Contêm material de propaganda.

— Que quer isso dizer?

— Faço parte de um grupo de pessoas que não gostam muito, digamos assim, do governo actual, ou, melhor, que lhe têm ódio e desejariam que ele caísse o mais depressa possível. Esses pacotes contêm justamente prospectos impressos, nos quais explicamos às pessoas porque este governo não presta e indicamos a maneira de agir para se desembaraçarem dele.

Nunca me ocupei de política. Para mim, como para muita gente, parecia-me, a questão do governo nem sequer se punha. De repente lembrei-me de Astárito e das alusões que ele de tempos a tempos fazia à política. Gritei então, aflita:

— Mas é proibido! É perigoso!

Olhou-me com satisfação. Dissera-lhe enfim uma coisa que lhe agradava e lisonjeava o seu amor-próprio. Confirmou com excessiva gravidade e ligeiramente enfático:

— De facto, é perigoso… Agora é a ti que compete decidir se queres ou não prestar-me esse serviço.

— Não é por mim que digo isto — repliquei vivamente — É por ti. Por mim, aceito.

— Toma cuidado, porque é de facto perigoso — preveniu-me ainda. — Se te descobrem, vais parar à prisão.

Olhava-o, e bruscamente senti por ele um excesso de afeição impossível de conter. Os olhos encheram-se-me de lágrimas e balbuciei:

— Não compreendes então que isso para mim não tem importância alguma? Serei presa… e depois?

Abanei a cabeça e as lágrimas rolaram-me pelas faces. Admirado, perguntou-me:

— Porque choras tu agora?

— Perdoa-me — disse-lhe. — Sou uma imbecil… Eu própria não sei porquê… talvez porque quisesse que te desses conta de que te amo e que por ti estou pronta a fazer seja o que for.

Ainda não tinha compreendido que não lhe devia falar do meu amor. Ao ouvir as minhas palavras, o seu rosto mostrou-se embaraçado e tomou uma expressão vaga e distante, alteração que de futuro, em casos idênticos, eu havia de notar! Desviou os olhos e disse-me apressadamente:

— Então, está bem! Dentro de dois dias trago-te os pacotes, fica combinado. Agora é tarde; preciso de me ir embora.

Dizendo isto, saltou da cama e começou a vestir-se a toda a pressa. Fiquei onde estava, sobre a cama, com a minha emoção e as minhas lágrimas, nua e um pouco envergonhada, sem saber se seria de estar nua se de estar a chorar. Apanhou as roupas que atirara para o chão e vestiu-as. Foi ao bengaleiro, tirou o sobretudo, enfiou-o e aproximou-se de mim.

— Toca aqui! — disse-me com um sorriso gracioso e ingênuo que tanto gostava de lhe ver.

Olhei e vi que me indicava um dos bolsos do sobretudo. Aproximara-se da cama para que eu pudesse estender a mão sem esforço. Senti um objecto duro.

— Que é? — perguntei-lhe sem compreender.

Sorriu satisfeito, introduziu a mão na algibeira, olhou-me nos olhos e tirou devagarinho, mas só metade, um revólver preto.

— Um revólver? — gritei. — Para que o queres?

— Nunca se sabe — respondeu-me. — Pode vir a ser preciso…

Fiquei inquieta, tentando pensar, porém ele não me deu tempo para isso. Tornou a meter a arma no bolso, curvou-se, aflorou os meus lábios com os seus e disse-me:

— Então está combinado, não está? Volto daqui a dois dias.

Antes que me refizesse da surpresa ele tinha saído. Muitas vezes, daí em diante, pensando neste primeiro encontro de amor, repreendi-me cruelmente por não ter sabido prever os perigos aos quais o expunha a sua paixão política. A verdade é que não tinha, nem nunca vim a ter, qualquer influência sobre ele. Mas, pelo menos, se eu soubesse então o que soube depois, teria podido aconselhá-lo: e mesmo que os conselhos para nada servissem, estaria ao seu lado em plena consciência da causa e firmemente decidida.

Esta foi certamente a minha culpa, ou, melhor, a culpa da minha ignorância, da qual não era culpada, mas sim a minha condição. Como já disse, nunca me ocupei de assuntos de política, nada deles percebia, e sentia-os estranhos ao meu destino; era como se eles se desenrolassem não à minha volta, mas num outro planeta. Quando lia o jornal, saltava a primeira página porque as notícias sobre política não me interessavam e tomava conhecimento dos assuntos comezinhos, em que certos acontecimentos ou alguns crimes forneciam ao meu espírito matéria de reflexão. Na realidade a minha condição era muito parecida com a de certos animaizinhos transparentes que vivem, segundo dizem, no fundo do mar, quase às escuras, e nada sabem do que se passa à superfície, à luz do sol. A política, como de resto numerosas coisas às quais os homens pareciam ligar tanta importância, chegava até mim como de um mundo desconhecido, superior — mais obscuras, mais incompreensíveis que a luz do dia é para esses simples animálculos no fundo dos seus esconderijos submarinos.

Mas não foi só culpa minha e da minha ignorância; foi também culpa dele, da sua imprudência e da sua vaidade. Se eu me tivesse apercebido dos perigos que a sua vaidade poderia fazer surgir — e esses perigos existiam —, eu poderia talvez ter agido de maneira diferente; não sei qual seria o resultado, mas ter-me-ia esforçado por compreender e conhecer tudo o que ignorava. Aqui quero notar outro elemento que de certo modo contribuiu para o meu procedimento despreocupado: o facto de Jaime dar a impressão de, em vez de agir com seriedade, representar um papel e de uma maneira quase cômica. Dir-se-ia que ele compunha peça por peça uma personagem ideal na qual não acreditava senão até certo ponto, e que se esforçava sempre, quase maquinalmente, por harmonizar os seus actos com os desta personagem. Essa contínua comédia dava a impressão de um jogo no qual ele era, num certo sentido, um perfeito mestre; mas, como acontece aos jogadores, uma impressão semelhante roubava uma grande parte da seriedade a tudo o que ele fazia e sugeria também a falsa certeza de que para ele nada era irreparável e que no último momento o seu adversário lhe devolveria o dinheiro perdido e lhe estenderia a mão. Talvez até, como acontece com as crianças, para quem tudo é jogo, se divertisse realmente; mas o seu adversário era de respeito, isso viu-se pela continuação. Foi assim que, acabada a partida, se encontrou desprevenido e desarmado, excluída toda a possibilidade de continuar o jogo e preso numa armadilha mortal.

Estas coisas e muitas outras ainda mais tristes — ai de mim! — e não menos razoáveis só as pensei mais tarde, reflectindo sobre os factos. Mas então, assim como ele parecia ter-me feito compreender, a suspeita de que este assunto dos pacotes poderia influenciar as nossas relações nem sequer me aflorou o espírito. Estava satisfeita por ele ter voltado, estava contente por lhe poder prestar um serviço e não ia mais além dessa dupla satisfação. Lembro-me de que, ao surpreender-me a pensar vagamente e como em sonhos neste singular serviço que ele me pedira, abanava a cabeça como se dissesse “Que infantilidade!” e pensava noutra coisa. De resto encontrava-me num estado de alma feliz a tal ponto que mesmo que o quisesse não teria podido aplicar a minha atenção a qualquer facto que me preocupasse.