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Mas no dia seguinte foi em vão que esperei a visita, que eu previra, da polícia. Todo esse dia e o dia seguinte decorreram sem que nada acontecesse que justificasse as minhas apreensões. Durante todo este tempo não saí de casa, nem mesmo do quarto, e depressa me cansei de pensar nas consequências da minha imprudência. Voltei a pensar em Jaime e desejei tornar a vê-lo, nem que fosse só mais uma vez antes que a denúncia do padre — continuava a considerá-la inevitável — fizesse o seu efeito. No terceiro dia, à tardinha, quase sem reflectir, saltei da cama, vesti-me com cuidado e saí de casa.

Sabia a morada de Jaime; em vinte minutos cheguei lá. Mas no momento de entrar pensei que não o tinha avisado e fui tomada de um acesso de timidez. Receava que me recebesse mal, que até mesmo me pusesse na rua! Atrasei o passo impaciente, e com a alma cheia de tristeza parei em frente de uma montra pensando se não seria melhor voltar pelo mesmo caminho e esperar que fosse ele a decidir-se ver-me. Compreendia que era preciso mostrar muita cautela e muita perspicácia, particularmente neste primeiro período das nossas relações, e nunca mostrar que estava presa a tal ponto que me era impossível viver sem ele. Por outro lado parecia-me duro voltar para trás, agora que a minha confissão me deixara inquieta e que tinha necessidade de o ver, até mesmo só para me distrair das minhas preocupações. Os meus olhos caíram sobre a montra da loja em frente da qual parara; era uma casa de camisas e gravatas; lembrei-me de repente de que lhe tinha prometido uma gravata nova para substituir a outra esfiada. Quando se está apaixonado não se raciocina; disse a mim mesma que a gravata podia servir de pretexto para o visitar, sem reparar que essa dádiva confirmava precisamente o carácter inferior e ansioso do meu sentimento por ele. Entrei na loja, e, depois de ter escolhido durante muito tempo, preferi uma gravata cinzenta com riscas vermelhas — a mais bonita e a mais cara. Com a cortesia um pouco indiscreta dos empregados que pretendem influenciar os clientes, o empregado perguntou-me se a pessoa a quem se destinava a gravata era loura ou morena. “É moreno”, respondi lentamente; reparei que disse a palavra “moreno” com um acento terno e senti-me corar à ideia de que o caixeiro pudesse ter notado este acento.

A viúva Medolaghi habitava o quarto andar de uma velha casa triste, com janelas que davam para o cais do Tibre. Subi os oito lanços de escada e toquei sem tomar fôlego à porta, mergulhada na sombra. A porta abriu-se quase em seguida e Jaime apareceu no limiar.

— Ah! És tu? — disse, surpreendido. Era evidente que esperava alguém.

— Posso entrar?

— Sim, sim! Por aqui!

Atravessamos um vestíbulo quase às escuras e ele fez-me entrar numa sala, que estava igualmente na penumbra porque as janelas tinham os vidros esguios como as das igrejas. Entrevi uma quantidade de móveis escuros com nácar incrustado. Ao meio havia uma mesa redonda com um licoreiro azul, de feitio fora de moda. Havia muitos tapetes e uma pele de urso branca um pouco gasta. Tudo era velho ali dentro, mas asseado, arrumado, como se estivesse conservado pelo profundo silêncio que parecia reinar na casa desde tempos imemoráveis. Sentei-me num canapé ao fundo da sala e perguntei a Jaime:

— Esperas alguém?

— Não, mas porque vieste cá?

Eram na realidade palavras pouco acolhedoras. Não parecia no entanto zangado, apenas surpreendido.

— Vim dizer-te adeus — respondi-lhe, sorrindo —, porque creio bem que é a última vez que nos vemos.

— Porquê?

— Estou convencida de que amanhã, o mais tardar, me vêm buscar para me meterem na prisão.

— Na prisão? Que diabo fizeste tu?

Percebi na sua voz e na sua cara uma alteração e compreendi que estava com medo por ele próprio. Talvez pensasse que o tinha denunciado ou comprometido de uma maneira ou de outra, revelando a alguém a sua actividade política. Sorri ainda e continuei:

— Não tenhas medo… nada disto te diz respeito… nem mesmo de longe.

— Não, não — apressou-se a dizer. — Mas não compreendo é tudo. Na prisão? Porquê?

— Fecha a porta e senta-te aqui — disse-lhe indicando um lugar ao meu lado, no canapê.

Ele foi fechar a porta e sentou-se ao pé de mim. Então, com muita calma, contei-lhe a verdadeira história da caixa de pó de arroz e a minha confissão. Ouvia-me de cabeça baixa, sem me olhar, roendo as unhas, o que nele era sintoma de estar interessado. Acabei por concluir:

— Estou certa de que este padre me fará passar um mau bocado… Que dizes?

Abanou a cabeça e respondeu-me, não olhando na minha direcção mas na dos vidros da janela:

— Ele não o deve fazer… estou mesmo certo de que o não fará… Não basta que um padre seja feio…

— Mas se tu o tivesses visto! — interrompi.

— … que seja monstruoso, se quiseres, para que faça uma coisa semelhante. Não é menos verdade que tudo pode acontecer — acrescentou vivamente com um sorriso.

— Então achas que não devo ter medo?

— Acho… até mesmo porque nada podes fazer… isso não depende de ti!

— É bom de dizer! Tem-se medo porque se tem medo… é mais forte do que nós!

Teve de repente um gesto afectuoso, um dos seus gestos. Pôs-me uma mão no pescoço, sacudiu-me rindo e dizendo:

— Tu não tens medo, pois não?

— Mas se te disse que tenho!

— Tu não tens medo!És uma mulher corajosa.

— Asseguro-te que tenho um medo horrível; é tão verdade que me deitei e só me levantei dois dias depois.

— Sim… mas em seguida vieste ter comigo e contaste-me a coisa com a maior tranquilidade… Tu não sabes o que é ter medo!

— E que posso eu fazer? — perguntei, sorrindo sem querer. — Não posso começar a gritar de medo!

— Tu não tens medo!

Houve um momento de silêncio. Depois perguntou-me com uma entoação particular que me surpreendeu:

— E o teu amigo… chamemos-lhe assim, esse Sonzogne, que tipo tem?

— É um tipo como há tantos — disse vagamente. Nesse momento nada encontrava para dizer de Sonzogne.

— Mas como é? Descreve-mo!

— Porquê? Queres mandá-lo prender? — disse-lhe rindo. Lembra-te de que me engavetavam também a mim. — Depois acrescentei: — É alourado… baixo… largo de ombros… com uma cara pálida, olhos azuis… nada de especial, em suma. A única coisa que ele tem de diferente é ser muito forte.

— Muito forte?

— Quando se vê não se acredita. Mas se se lhe toca num braço, parece de ferro.

Como via que me escutava com interesse, contei-lhe o incidente passado com Gino e Sonzogne. Não fez comentários, mas quando acabei perguntou-me:

— E julgas que Sonzogne tenha premeditado o crime, quero dizer, que o tenha preparado e executado a frio?

— De maneira nenhuma! — disse-lhe. — Ele nunca premedita coisa alguma. Um momento antes de atirar Gino ao chão provavelmente nem pensava em fazê-lo. Deve ter acontecido o mesmo com o ourives.