— Então porque o fez?
— Sei lá… porque é mais forte do que ele. Como um tigre… está muito tranquilo e de repente atira-nos um pontapé.
Contei-lhe toda a história das minhas relações com Sonzogne, a maneira como me batera e como tinha tido com certeza a ideia de me matar quando estávamos às escuras. E concluí:
— Nunca pensa nisso… mas num certo momento é dominado por qualquer coisa mais forte do que a sua vontade e então é melhor não estar ao pé dele. Tenho a certeza de que foi procurar o ourives para lhe vender a caixa… O outro insultou-o e ele matou-o.
— Em suma, é uma espécie de animal.
— Chama-lhe como quiseres. Isso deve ser — disse eu, procurando pôr a claro para mim própria o sentimento que me inspirava o furor homicida de Sonzogne — um impulso semelhante ao que me leva a amar-te. Porque gosto eu de ti? Só Deus o sabe… Porque sente Sonzogne em certos momentos o impulso de matar? pela mesma razão. Só Deus o sabe. Parece-me que neste caso não há qualquer explicação.
Depois de reflectir, levantou a cabeça e perguntou-me:
— E eu, que impulso julgas que me leva para ti? Julgas que sinto um impulso amoroso?
Tive um medo horrível de o ouvir dizer que não me amava. Tapei-lhe a boca com a minha mão e supliquei-lhe:
— Por piedade… não me digas o que sentes por mim!
— Mas porquê?
— Porque não me interessa saber. Não sei o que sentes por mim e não o quero saber. Chega-me saber o que eu sinto por ti.
Abanou a cabeça e disse:
— Fazes mal em gostar de mim… devias amar um homem como Sonzogne.
Olhei-o sinceramente admirada.
— Mas que dizes tu? Um criminoso?!
— Pode ser que seja um criminoso… mas sente os impulsos que tu dizes… assim como tem impulsos para matar, tenho a certeza de que terá um impulso para amar, assim, com simplicidade, sem complicações… eu, pelo contrário…
Não o deixei acabar e protestei:
— Mas tu não te podes comparar com Sonzogne. Tu és aquilo que és… o outro é um criminoso, um monstro. E depois não deve ser verdade que ele possa sentir impulsos amorosos. Para ele é simplesmente uma satisfação dos sentidos: eu ou outra, é a mesma coisa.
Não parecia convencido, mas nada disse. Aproveitei este silêncio, e, estendendo a mão, enfiei os dedos na manga do seu casaco e procurei fazê-los subir ao longo do seu braço.
— Jaiminho — disse-lhe.
— Porque me chamas Jaiminho?
— É o diminutivo de Jaime. Não tenho o direito?
— Sim… sim… tens o direito… Somente é o diminutivo que usam em família… mais nada.
— É a tua mãe quem te chama assim? — perguntei largando-lhe o pulso e introduzindo os dedos entre a gravata e a camisa e passando-os sobre o peito nu.
— Sim, minha mãe chama-me Jaiminho — confirmou com certa impaciência.
E passado um momento, com um acento meio sarcástico meio furioso :
— De resto, não é o único caso em que tu e minha mãe usam as mesmas expressões. No fundo vocês têm a mesma opinião sobre quase todas as coisas.
— Por exemplo? — perguntei.
Estava perturbada; tinha desabotoado a camisa e esforçava-me por alcançar o seu ombro magro e grácil de rapazinho.
— Por exemplo, quando te contei que me ocupava de política tu gritaste logo com voz apavorada: Mas é proibido! É perigoso! Pois bem! Minha mãe teria dito exactamente a mesma coisa, com a mesma voz.
A ideia de que me parecia com a mãe dele envaidecia-me, primeiro por ser sua mãe e depois porque era uma senhora.
— Que pateta! — disse-lhe com ternura. — É porque ela gosta tanto de ti como eu. É bem verdade que é perigoso ocupar-se de política; um rapaz que eu conheço foi preso e há dois anos que está detido. E para que? Eles são mais fortes, e mal vocês se mexem metem-nos na prisão. Parece-me que se podia muito bem viver sem política.
— A minha mãe! A minha mãe! — gritou, rejubilante e sarcástico. — Exactamente o que diz minha mãe !
— Não sei o que diz a tua mãe — respondi —, mas é bem certo que tudo o que ela te diz é para teu bem. Devias deixar a política. Tu não és um político profissional… és um estudante… os estudantes só tem que estudar.
— Estudar, doutorar-se e arranjar uma posição — murmurou como se falasse consigo.
Não lhe respondi, mas aproximei a minha cara da sua e ofereci-lhe os lábios. Beijamo-nos, depois separamo-nos; parecia zangado por me ter beijado e olhava-me com ar hostil e mortificado. Julguei tê-lo magoado por interromper com o meu beijo a sua conversa sobre política e acrescentei depressa:
— De resto, faz o que quiseres, nada tenho com a tua vida… Se quiseres, visto que estou aqui, podes dar-me o pacote… escondê-lo-ei como combinamos.
— Não, não — respondeu. — Este não é o momento para favores destes! Dada a tua amizade com Astárito… se ele os encontra…
— Porquê? Astárito é assim tão perigoso?
— É dos piores — respondeu-me com gravidade.
Senti não sei que tentação maliciosa de o arreliar e de lhe espicaçar o amor-próprio, mas afectuosamente, sem maldade.
— No fundo — observei com doçura —, nunca tiveste a intenção de me confiar esses pacotes!
— Então porque te falei neles?
— Ouve, não te zangues, mas penso que me falaste neles por falar, para te tornares interessante, para me mostrares que fazias realmente coisas perigosas e proibidas.
Zangou-se e vi que tinha tocado na sua corda sensível.
— Que disparate! — gritou. — És uma parva!
Depois, subitamente calmo, perguntou-me com ar desconfiado :
— Porquê? Que te leva a pensar isso?
— Não sei — respondi sorrindo. — Toda a tua maneira de agir… Tu talvez não dês por isso, mas não dás a impressão de fazer essas coisas a sério.
Teve um gesto cômico que parecia dirigido contra ele:
— São, pelo contrário, coisas muito sérias! — disse-me. Levantou-se, estendeu os braços magros, recitou com voz de falsete, num tom enfático: “Armas! Sim, armas! E só eu cairei!” E continuou a agitar os braços e as pernas como um fantoche. Estava cômico.
— Que queres dizer? — perguntei.
— Nada — respondeu. — É um verso.
De uma maneira bizarra pareceu passar da excitação a um brusco abatimento; tornou-se sombrio e meditativo, tornou a sentar-se e disse-me num tom sincero:
— Pelo contrário, olha, faço as coisas tão a sério que espero com toda a certeza ser preso… Então toda a gente verá bem se fiz as coisas a sério!
Não respondi; acariciei-lhe o rosto, tomei-lho entre as mãos e disse-lhe:
— Que lindos olhos tens!
Era verdade; os seus olhos eram realmente belos, grandes e doces, com uma expressão intensa e ingênua. De novo se perturbou e o queixo tremeu-lhe.
— Porque não vamos para o teu quarto? — murmurei.
— Nem pensar nisso. É contíguo ao quarto da viúva, que fica lá todo o dia de porta aberta para vigiar o corredor.
— Então vamos a minha casa.
— É muito tarde… moras longe… Espero uns amigos de um momento para o outro.
— Então aqui.
— Tu és doida!
— Confessa antes que tens medo — insisti. — Não tens medo de fazer propaganda política, mas tens medo de ser surpreendido nesta sala com a mulher que te ama. Que pode acontecer-te no fim de contas? Que a viúva te despeça? Que sejas obrigado a procurar outro quarto?
Sabia que excitando o seu amor-próprio podia obter-se tudo dele. Com efeito, pareceu convencido. Devia sentir um desejo pelo menos tão forte como o meu.