— Compreendo. Nós retiramo-nos. Até à vista, Jaime; amanhã à mesma hora.
A Túlio, pelo contrário, as minhas palavras pareceram tê-lo perturbado. Fixou-me de boca aberta e os olhos franzidos. Com certeza nunca ouvira uma mulher falar com esta franqueza, e mil pensamentos sujos devem ter-lhe agitado o espírito. Mas o alto chamou-o da porta:
— Túlio… Vamos !
Então, sem tirar da minha pessoa os olhos espantados, recuou até à porta e saiu.
Esperei que desaparecessem para me aproximar de Jaime, que ficara junto da janela, de costas voltadas, e passar-lhe um braço à roda do pescoço:
— Aposto que neste momento não me podes ver! Voltou-se lentamente e olhou-me. Havia cólera no seu rosto; mas ao olhar o meu, que devia ter uma expressão doce, cheia de amor — até mesmo inocente, à sua maneira —, o seu olhar mudou; perguntou-me num tom resignado, quase triste :
— Agora estás contente? Tens o que querias.
— Sim, estou contente! — disse-lhe, beijando-o com força.
Deixou-se beijar, depois respondeu:
— Quais são as coisas que tens para me dizer?
— Nada — respondi. — Tenho desejos de ficar contigo esta tarde.
— Mas eu — disse —, daqui a pouco vou jantar. Janto cá com a viúva Medolaghi.
— Bem! Convida-me para jantar.
Olhou-me e o meu à-vontade fê-lo sorrir, mas involuntariamente.
— Está bem — disse com condescendência. — Vou avisá-la… mas como queres que te apresente?
— Como quiseres… como uma parente.
— Não… vou apresentar-te como minha noiva… está bem?
Não ousei mostrar-lhe até que ponto a sua proposta me dava prazer. Afectei um ar indiferente e respondi:
— Pelo que me diz respeito… noiva ou outra coisa, tanto faz… contanto que fiquemos juntos.
— Espera, volto já.
Saiu. Fui a um canto da sala, arranjei-me, ajustei rapidamente a combinação, toda torcida pelo amor e pela chegada inopinada dos amigos de Jaime. Num espelho colocado na minha frente vi a minha perna longa e perfeita calçada de seda e fez-me um curioso efeito no meio de todos estes velhos móveis, com ar silencioso e fechado. Lembrei-me do dia em que estivera com Gino na casa da patroa dele e de onde trouxera a caixa de pó de arroz, e não pude deixar de comparar esse momento da minha vida, agora tão longínquo, com o instante presente. Naquela altura experimentara uma impressão de vazio e de amargura e o desejo de me vingar, senão de Gino, pelo menos do mundo que por intermédio de Gino tão cruelmente me ofendera. Agora, pelo contrário, sentia-me contente, livre, leve. Compreendi mais uma vez que amava verdadeiramente Jaime e que pouco me importava não ser amada por ele.
Sacudi o vestido, aproximei-me do espelho e arranjei o cabelo. A porta abriu-se nas minhas costas e Jaime entrou.
Esperava que me abraçasse enquanto me olhava ao espelho. Mas foi sentar-se no canapé, no fundo da sala, acendeu um cigarro e disse:
— Pronto, já está. Vão pôr mais um talher. Daqui a pouco vamos para a mesa.
Afastei-me do espelho e vim sentar-me ao seu lado, enfiei o meu braço no dele e apertei-o contra mim.
— Estes dois homens — disse — são amigos políticos, não são?
— São.
— Não devem ser muito ricos.
— Porquê?
— A julgar pela maneira como estão enfarpelados.
— Tomás é filho de um dos nossos caseiros — disse-me. O outro é um professor.
— Não simpatizo com ele.
— Com quem?
— Com o professor. É porco. Olhou-me de uma tal maneira quando eu disse que acabara de ter estado contigo…
— Quer dizer que lhe agradaste.
Calamo-nos durante algum tempo. Depois eu disse:
— Tens vergonha de me apresentar como tua noiva. Se queres vou-me embora.
Sabia que era a única maneira de lhe arrancar um gesto afectuoso: picar o seu amor-próprio, acusando-o de se envergonhar de mim. Com efeito, passou-me logo o braço em torno da cintura e disse-me:
— Fui eu quem teve a ideia: porque havia de me envergonhar de ti?
— Não sei… Vejo que estás mal disposto.
— Não estou mal disposto; estou aturdido — respondeu-me num tom sério. — Foi por nos termos amado. Deixa recompor-me.
Reparei que ainda estava muito pálido e parecia fumar com aborrecimento.
— Tens razão — disse-lhe. — Desculpa. Mas tu és sempre tão frio, tão distante, que me fazes perder a cabeça… Se não fosses assim, há pouco não tinha insistido para ficar.
Apagou o cigarro e disse-me:
— Não é verdade que eu seja frio e distante.
— E no entanto…
— Agradas-me muito — continuou, olhando-me com atenção. — E, com efeito, há um instante não te resisti como teria desejado.
Esta frase agradou-me e baixei os olhos sem pronunciar palavra. Ele acrescentou:
— Contudo, suponho que no fundo tens razão… não se pode chamar amor a isto.
Apertou-se-me o coração e não pude deixar de murmurar:
— Que é para ti o amor?
— Se eu te amasse — respondeu-me —, há pouco não teria desejado que te fosses embora… e depois não me teria zangado quando tu decidiste ficar.
— Zangaste-te?
— Sim… e agora conversaria contigo, estaria alegre, desenvolto e brincalhão. Estaria a acariciar-te, a dizer-te madrigais, a fazer projectos para o futuro… beijar-te-ia. Não é isto o amor?
— Sim — disse eu em voz baixa. — Em todo o caso, são esses os efeitos do amor.
Não falou durante algum tempo, depois disse sem nenhuma vaidade, com uma seca humildade:
— Eu faço tudo da mesma maneira, sem nada sentir no coração… sem amar coisa nenhuma, sabendo somente pelo espírito como se fazem as coisas. Por vezes mesmo faço-as a frio, exteriormente. Sou assim e creio que não posso mudar.
Fiz um grande esforço sobre mim e respondi-lhe:
— Amo-te como és; não te atormentes!
Depois beijei-o com grande amor. Quase no mesmo instante, a porta abriu-se. Uma velha criada veio dizer que o jantar estava servido.
Saímos da sala e passamos por um corredor para ir para a casa de jantar. Lembro-me bem de todos os pormenores desta casa e das pessoas, porque naquele momento estava sensível como uma chapa fotográfica. Não tinha tanto a impressão de agir como a de me ver agir com os olhos tristes e bem abertos. Tal é talvez o efeito da revolta que nos inspira uma realidade na qual sofremos e que desejaríamos diferente.
A viúva Medolaghi pareceu-me parecida, não sei porquê, com o seu salão de ébano com incrustações de nácar. Era uma mulher gorda, de estatura imponente, com peito volumoso e ancas maciças. Toda vestida de seda preta, com um largo rosto desfeito, de uma palidez nacarada, precisamente enquadrada por cabelos pretos que pareciam pintados, com fundas olheiras em torno dos olhos. Ficou de pé em frente de uma terrina decorada com flores e servia a sopa com uma espécie de aborrecimento. O candeeiro de suspensão descia sobre a mesa, iluminava-lhe o peito como um grosso embrulho preto e luzidio e deixava-lhe a cara na sombra. Nesta sombra os seus olhos rodeados de rugas pretas pareciam esburacar a cara branca como uma mascarilha de Carnaval. A mesa não era grande e tinha quatro pratos; um par de cada lado. A filha da senhora estava já sentada no seu lugar e não se levantou quando nos viu entrar.
— A menina senta-se ali — disse a viúva Medolaghi. — Como se chama a menina?
— Adriana.
— Tem graça, como a minha filha! — disse negligentemente. — Temos duas Adrianas!
Falava com ar distante sem nos olhar; era claro que a minha presença nenhum prazer lhe dava. Como já disse, pintava-me pouco e não oxigenava os cabelos, em suma, não traía o meu “trabalho” por qualquer sinal exterior. Mas que eu era rapariga do povo, simples e sem educação, isso via-se com certeza e eu nenhum interesse tinha em o dissimular.