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A mesa fora entretanto levantada. Em cima da toalha cheia de migalhas, no clarão arredondado da luz que caía do candeeiro, havia quatro pequenas chávenas de café, um cinzeiro de barro em forma de tulipa e uma grande mão branca, cheia de manchas escuras, com os dedos carregados de grossos anéis fora de moda, segurando um cigarro aceso: a mão da Sr.a Medolaghi. De repente senti uma grande intolerância tomar conta de mim e levantei-me:

— Tenho muita pena, Jaime — disse, exagerando propositadamente a minha pronúncia popular —, mas tenho que fazer… Preciso de me retirar…

Ele esmagou o cigarro no cinzeiro e levantou-se também. Eu larguei umas “boas-noites” sonoras, fiz uma leve reverência, à qual a Sr.a Medolaghi respondeu com altivez distante e que a filha ignorou por completo, e saí. Na antecâmara disse a Jaime:

— Palpita-me que logo à noite a Sr.a Medolaghi vai pedir-te que procures quarto noutro sitio…

Ele encolheu os ombros:

— Não me parece — respondeu. — Eu sou dos que pagam bem e com pontualidade.

— Vou-me embora — disse eu. — Este jantar pôs-me triste.

— Porquê?

— Porque me convenci, por fim, de que tu és realmente incapaz de amar.

Disse isto com tristeza, sem olhar para ele. Depois ergui os olhos e tive a impressão de que ele próprio estava mortificado. Talvez fosse apenas efeito da pouca luz do vestíbulo sombrio, mas senti-me possuída por um grande remorso.

— Ficaste aborrecido? — perguntei.

— Não — respondeu ele. — No fundo o que tu disseste é verdade.

A minha alma inundou-se de afeição. Beijei-o impetuosamente e disse-lhe:

— Não é verdade… disse-to para te arreliar… e depois isso não impede que te ame… Olha… Trouxe-te esta gravata.

Abri a mala, tirei a gravata e estendi-lha. Olhou-a e perguntou-me:

— Roubaste-a?

Esta brincadeira nele valia talvez mais do que um caloroso agradecimento: mas só o compreendi mais tarde. Naquele momento senti o coração apertado. Os olhos encheram-se-me de lágrimas e balbuciei:

— Não, comprei-a… na loja lá em baixo.

Reparou na minha humilhação e beijou-me dizendo:

— Pateta! Estava a brincar. De resto dar-me-ia o mesmo prazer se a tivesses roubado. Talvez até ainda mais…

— Espera, que eu ponho-ta! — disse-lhe, um pouco mais consolada.

Levantou o queixo, tirei-lhe a gravata velha, pus-lhe a nova e dei-lhe o nó.

— Esta gravata velha e toda esfiada vou levá-la! — disse-lhe. — Não a deves pôr mais.

Na realidade o que eu queria era uma recordação sua, qualquer coisa que ele tivesse usado.

— Então voltaremos a ver-nos em breve? — disse.

— Quando?

— Amanhã depois de jantar.

— Está bem!

Agarrei-lhe na mão e fiz menção de lha beijar. Ele baixou o braço, mas não pôde impedir os meus lábios de aflorarem os seus dedos. Rapidamente, sem me voltar, desci a escada.

7

Depois desse dia continuei a minha vida habitual. Amava realmente Jaime e mais de uma vez senti desejo de abandonar uma vida tão oposta ao verdadeiro amor.

Mas o amor não mudara a minha situação. Estava sempre na mesma, quer dizer, sem dinheiro e na impossibilidade de o ganhar de outra maneira. Nada queria pedir a Jaime, que de resto estava limitado à pequena pensão que a família lhe enviava. Devo mesmo dizer que eu sentia continuamente o desejo de pagar sempre em todos os lugares a que íamos juntos, cafés ou restaurantes. Ele recusava sistematicamente as minhas ofertas, o que me dava sempre desilusão e amargura.

Quando já não tinha dinheiro levava-me para os jardins públicos, onde conversávamos e olhávamos os transeuntes, sentados num banco, como fazem os pobres. Um dia disse-lhe:

— Mesmo que não tenhas dinheiro podemos ir na mesma ao café; pagarei eu; que mal é que tem isso?

— Não é possível.

— Mas porquê? Queria ir beber alguma coisa a um café.

— Então vai sozinha.

Na verdade não era tanto ir ao café o que me interessava, como pagar-lhe a ele. Desejava fazê-lo de uma maneira tenaz e lamentável. Mais ainda do que pagar-lhe desejaria dar-lhe directamente dinheiro, todo o dinheiro que ganhasse à medida que o fosse recebendo dos meus amantes de passagem.

Parecia-me que para uma pessoa como eu seria a única maneira de lhe provar o meu amor. Pensava que sustentando-no ligava a mim por um laço mais forte que o da afeição. De uma outra vez disse-lhe:

— Dava-me imenso prazer dar-te dinheiro… E tenho a certeza de que também a ti te daria prazer recebê-lo.

Desatou a rir e respondeu-me:

— As nossas relações, pelo menos no que me diz respeito, não são fundamentadas no prazer.

— Então em quê?

Hesitou, depois retorquiu:

— Na tua vontade de me amar e na minha fraqueza perante essa vontade… mas não julgues que a minha fraqueza não tem limites.

— Que queres dizer?

— É muito simples — respondeu-me tranquilamente. — Já lhe expliquei muitas vezes. Estamos juntos porque tu o quiseste. Eu, pelo contrário, não o quis, e agora ainda, em teoria pelo menos, não o quero.

— Está bem, está bem — interrompi-o. — Não falemos mais do nosso amor. Não tenho razão para te sustentar!

Muitas vezes, pensando no seu carácter, acabei por chegar à conclusão dolorosa de que ele não me tinha amor algum, e que eu era para ele objecto de não sei qual experiência. Realmente só se preocupava consigo próprio, mas nestes limites o seu carácter revelava-se extraordinariamente complicado.

Era, como me parecia ter compreendido, filho de uma família provinciana abastada; um rapaz delicado, inteligente, culto, bem educado, sério. A sua família, depois do pouco que pude depreender, porque ele não gostava de falar nela, era exactamente a família na qual os meus vãos sonhos de regularidade me tinham feito sonhar para mim.

A família tradicional; um pai médico, uma mãe ainda nova, que vivia muito para a casa, para o seu marido e para os seus filhos, três irmãs mais novas e um irmão mais velho. É verdade que o pai, uma autoridade local, era um faz-tudo, a mãe uma provinciana, as irmãs raparigas talvez frívolas e o irmão mais velho um licencioso do gênero de João Carlos. Mas estes defeitos, todos somados, eram suportáveis, e para mim, que nascera num meio e numa situação tão diferentes, nem mesmo eram defeitos. De resto esta família era muito unida, e todos, irmãs, irmão e pais, gostavam muito de Jaime.

Eu achava que ele era muito afortunado por ter nascido numa família assim. Ele, pelo contrário, nutria por ela uma aversão, uma antipatia e um aborrecimento que eram realmente incompreensíveis para mim. Parecia sentir a mesma antipatia, a mesma aversão e o mesmo aborrecimento por si próprio, pelo que fazia, pelo que era. Mas este ódio por ele não era mais do que um reflexo do ódio que sentia pela família.

Por outras palavras, parecia odiar na sua pessoa tudo o que conservava da sua família ou, de uma maneira ou de outra, recebera a influência da família. Acabei de dizer que era bem educado, culto, inteligente, delicado e sério. Desprezava a sua boa educação, a sua inteligência, a sua cultura, a sua delicadeza, a sua seriedade unicamente porque supunha que as devia ao seu meio ou à família na qual nascera e fora criado.