Nessa noite essa sua atitude levou tanto tempo que adormeci, com a cabeça descaída para trás e a mão pousada na sua cabeça. Dormitei não sei quanto tempo. A certa altura julguei acordar e vi Astárito sentado na minha frente todo vestido e olhando-me com os seus olhos biliosos e melancólicos. Mas talvez tivesse sido um sonho, porque depois acordei completamente e vi que Astárito já lá não estava. Tinha deixado no sítio onde pousara a cabeça a sua soma habitual de dinheiro.
Em seguida passaram os quinze dias que eu considero os mais felizes da minha vida.
Via Jaime quase todos os dias e, se bem que as nossas relações não tivessem mudado, contentava-me com esta espécie de hábito, na qual parecia termos encontrado um ponto de acordo. Tacitamente estava bem claro entre nós que ele não me tinha amor, nunca me amaria e de qualquer maneira preferia sempre a castidade ao amor. Também estava tacitamente estabelecido que eu o amava, o amaria sempre a despeito da sua indiferença e que de qualquer maneira preferia um amor incompleto e vacilante como aquele que ausência de amor. Mas eu não era feita como Astárito; não me resignando a não ser amada, não encontrava menos prazer em amar; juraria que no fundo do meu coração não perdera a esperança de ser amada por Jaime à força de submissão, de paciência e de afeição. Mas não acalentava esta aspiração; ela era, bem mais que outra coisa, o tempero levemente amargo de deliciosas incertezas duramente ganhas.
Entretanto, como quem não quer a coisa, procurei penetrar na sua vida. Já que não podia entrar pela porta principal procurei esgueirar-me pela de serviço. A despeito deste ódio pelos homens que ele proclamava, e que creio que sentia, experimentava, por uma curiosa contradição, um impulso indomável para pregar e esforçar-se por fazer o que ele considerava o bem do povo. Quase sempre intercalado por bruscos acessos de sarcasmo e de aborrecimento não era menos sincero quando o fazia.
Foi nesta altura que ele pareceu apaixonar-se pelo que ele chamava, não sem ironia, a minha educação. Como já disse, eu procurava prendê-lo a mim; assim, favoreci o seu entusiasmo. Esta experiência, no entanto, acabou quase de repente de uma maneira que vale a pena relatar. Vinha ter comigo muitas noites a seguir, trazia-me livros seus e depois de me explicar abreviadamente o assunto de que tratavam lia-me um trecho ou outro. Lia bem, com grande variedade de inflexões, segundo o assunto, e com um fervor que o tornava corado e lhe dava uma grande vivacidade ao rosto. Mas o que ele mais lia eram coisas que, a despeito dos meus esforços, não chegava a compreender. Bem depressa deixei de o ouvir, contentando-me em observar, com um entusiasmo que nunca fraquejava, as diversas expressões que a sua cara tomava. Na realidade, no decurso dessas leituras libertava-se, sem ironia, nem receio, como alguém que está no seu elemento e já não teme mostrar-se sincero. Aquilo magoava-me porque até então julgava que era o amor, e não a leitura, a situação mais favorável à expansão da alma humana. Para Jaime, parecia bem ser o contrário. Nunca lhe vi no rosto uma expressão de tanto entusiasmo e ao mesmo tempo de candura, mesmo nos raros momentos de sincero afecto por mim, como logo que elevava a voz com curiosas entoações cavernosas ou a baixava num tom reflectido para me declamar os seus autores preferidos. Eu via então desaparecer por completo aquele ar afectado, teatral e cômico que nunca o abandonava até mesmo nos momentos mais sérios e que dava a impressão de que ele estava sempre a representar um papel. Muitas vezes chegava a comover-se até às lágrimas.
Fechava o livro e perguntava-me num tom brusco:
— Gostas disto?
Geralmente dizia que gostava sem especificar porquê; não o poderia fazer, porque desde o princípio abandonei toda a tentativa de compreender. Mas um dia insistiu e perguntou-me:
— Diz-me porque gostas… explica-me!
— Para dizer a verdade — respondi depois de uma hesitação — nada te posso explicar, porque nada percebi.
— Porque não me disseste?
— Nada compreendo… ou quase nada do que me lês.
— E deixas-me ler sem mo dizer?
Saltava, batia com os pés no chão, furioso:
— Diabo! Mas tu és uma idiota, uma estúpida!… E eu a esforçar-me. És uma cretina!
Fez menção de me atirar com o livro à cabeça, mas conteve-se a tempo e continuou a injuriar-me durante um bom bocado. Deixei passar a fúria e observei-lhe:
— Dizes que me queres educar… mas a primeira coisa a fazer era agir de maneira a que eu não precisasse de ganhar a vida da maneira que sabes. Para engatar homens não é verdadeiramente necessário ler poesias ou reflexões sobre a moral. Podia muito bem não saber ler nem escrever; davam-mo o mesmo dinheiro.
Respondeu num tom sarcástico:
— Querias uma bonita casa, um marido, filhos, vestidos, um automóvel, não é? A desgraça é que as Sr.as Lobianco não lêem. Os motivos são diferentes dos teus, mas não menos justificáveis, ao que parece.
— Não sei o que quereria — respondi irritada —, mas esses livros convêm a uma condição diferente da minha. É como se oferecesses um chapéu de grande categoria a uma pedinte e quisesses que ela o usasse com os seus andrajos habituais!
— É possível — disse-me. — Mas para mim é a última vez que te leio uma linha!
Narro esta escaramuça porque me pareceu característica da sua maneira de pensar e de agir. Duvido de que tivesse continuado a sua obra educativa mesmo se eu não lhe tivesse mostrado a minha incompreensão. Não que fosse inconstante, mas tinha uma singular incapacidade — que se poderia chamar física — para manter qualquer esforço que exigisse um entusiasmo contínuo e sincero. Nunca mo disse claramente, mas compreendi depressa que esta atmosfera de comédia que criavam as suas palavras correspondia a um contíguo estado de espírito. Em suma, acontecia entusiasmar-se por um motivo qualquer, e enquanto durava o fogo do seu entusiasmo, ver a coisa como possível e concreta. Depois, de repente, o fogo extinguia-se e não lhe deixava mais que aborrecimento, desagrado, e sobretudo um sentimento total de absurdo. Neste caso ou se deixava cair numa gélida indiferença ou se agitava de uma maneira exterior e convencional como se este fogo não se tivesse apagado e então fingia. Para mim é difícil explicar o que lhe acontecia nessas ocasiões: provavelmente uma paragem brusca da vitalidade, como se de repente o calor do seu sangue tivesse abandonado o seu espírito, não deixando mais do que aridez e vazio. Era uma interrupção súbita, imprevisível, total, comparada à brusca interrupção de uma corrente eléctrica que mergulhasse no escuro uma casa faustosamente iluminada um minuto antes. Estas intermitências da mais profunda vitalidade, descobri-as depois das várias alternativas de entusiasmo e ardor para estados de apatia e inércia; mas acabei por ter a verdadeira revelação por ocasião de um incidente curioso, mas que mais tarde me pareceu significativo. Perguntou-me um dia, de uma maneira inesperada:
— Gostavas de fazer alguma coisa por nós?
— “Nós”, quem?
— Pelo nosso grupo. Por exemplo, ajudar-nos a fazer propaganda.
Estava sempre à espreita de tudo o que me pudesse aproximar dele e reforçar a nossa ligação. Respondi-lhe sinceramente:
— Com certeza! Diz-me o que devo fazer que eu o farei.
— Não tens medo?
— Medo de quê? Desde que tu o fazes também…
— Sim — disse —, mas primeiro é preciso que te explique de que se trata. Precisas de conhecer as ideias pelas quais te expões e te arriscas.
— Está bem! Explica-me!
— Mas não te interessam.
— Porquê? Primeiro interessam-me com certeza; além disso, tudo o que fazes me interessa, quanto mais não seja por tu o fazeres.
Olhou-me. Bruscamente, de uma maneira inesperada, os olhos iluminaram-se-lhe e a cara animou-se-lhe.