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— Está bem — disse. — Hoje é muito tarde… mas amanhã explico-te tudo… de viva voz porque os livros aborrecem-te. Mas já sabes que precisarás de me escutar, mesmo que te pareça não estares a compreender-me.

— Farei o possível por compreender — disse-lhe.

— Tens de compreender — disse como se falasse consigo próprio.

Foi-se embora.

No dia seguinte esperei-o mas não veio. Voltou dois dias depois. Uma vez no quarto, sentou-se, sem dizer palavra, aos pés da cama:

— Então — disse eu alegremente —, estou pronta. Sou toda ouvidos!

Notara a sua cara abatida, os olhos mortiços; toda a sua atitude era de abatimento: mas fingi não perceber. Acabou por me responder:

— É inútil ouvires, porque nada tenho para te dizer.

— Porquê?

— Porque não!

— Diz-me a verdade — protestei. — Julgas-me muito estúpida ou muito ignorante para compreender certas coisas? Agradeço-te.

— Não — respondeu gravemente. — Enganas-te.

— Então porquê?

Continuamos durante algum tempo, eu a insistir para saber e ele a defender-se. Acabou por me dizer:

— Queres saber porquê? Porque eu próprio, hoje, já não te poderia expor estas ideias.

— Mas como, se pensas nisso continuamente?

— É verdade; mas depois daquela noite, e sabe Deus por quanto tempo ainda, estas ideias já não estão claras no meu espírito; já nada percebo disso.

— Então!

— Procura compreender-me — disse. — Há dois dias, quando te propus trabalhar para nós, se te tivesse exposto logo estas ideias estou certo de que não só o teria feito com vigor, clareza e convicção, mas tu as terias compreendido. Hoje, pelo contrário, poderia mexer os lábios e a língua para pronunciar palavras, mas fá-lo-ia mecanicamente, sem qualquer participação. Hoje — concluiu — já nada compreendo.

— Nada compreendes?

— Não, nada mais compreendo; ideias, conceitos, factos, recordações, convicções, tudo se transformou para mim numa espécie de burburinho… este burburinho enche-me a cabeça, a cabeça toda (batia com os nós dos dedos na testa…) e desagrada-me como se fossem excrementos!

Eu olhava-o sem compreender. Um frêmito de desespero parecia percorrer-lhe o corpo.

— Tenta compreender-me — repetia. — Hoje não são as ideias, mas todas as coisas escritas, ditas ou pensadas são incompreensíveis para mim… absurdo. Por exemplo, sabes o Pai Nosso?

— Sei.

— Pois bem, di-lo.

— Pai Nosso que estais no céu. — comecei.

— Chega! — interrompeu-me. — Agora reflecte sobre a quantidade de maneiras como se escreveu esta oração no decurso dos séculos e na variedade de sentimentos que levou a dizê-la. Pois bem! Eu de nenhuma maneira a compreendo… Poderias recitá-la de trás para diante que para mim seria a mesma coisa.

Calou-se, depois continuou:

— Não são só as palavras que me fazem este efeito, mas também as coisas e as pessoas. Tu estás ao meu lado, sentada no braço do sofá; julgas talvez que eu te vejo? Não te vejo porque não te compreendo. Posso tocar-te, não te compreenderia melhor. Vês, eu toco-te — sacudiu o meu penteador e descobriu-me o peito —, apalpo-te o seio, sinto-lhe a forma, a tepidez, o contorno; vejo-lhe a cor, o relevo… mas não compreendo o que é. Digo a mim próprio: é um objecto redondo, quente e mole… que serve para amamentar… que se sente prazer quando se acaricia… mas não compreendo o que é… Digo a mim mesmo que é belo, que me deveria inspirar desejo, mas isso não me impede de nada compreender. Entendes agora? — repetiu, furioso, apertando-me o seio de tal maneira que não pude impedir um grito de dor.

Largou-me logo e fez notar passado um instante, tendo o ar de reflectir:

— É provável que seja este género de incompreensão que arrasta tanta gente à crueldade. Eles procuram encontrar o contacto com a realidade através da dor alheia.

Houve um momento de silêncio, depois eu disse:

— Se isso é verdade, então como te arranjas quando tens de fazer certas coisas?

— Por exemplo?

— Não sei. Tu dizes que distribuis os panfletos, que tu mesmo os rediges. Se não acreditas, como os rediges e distribuis?

Deu uma gargalhada sarcástica:

— Faço-o como se acreditasse — disse.

— Mas é impossível!

— Como é impossível? Quase toda a gente faz assim. Salvo comer, beber, dormir ou amar, quase todos fazem as coisas como se acreditassem nelas… Ainda não tinhas dado por isso?

Ria nervosamente.

— Eu não — respondi.

— Tu não — respondeu-me de uma maneira quase ofensiva —, precisamente porque te limitas a comer, beber, dormir e amar de cada vez que te apetece. Para todas essas coisas não parece que seja necessário simular. É muito, mas também é pouco!

Ria. Deu-me bruscamente uma grande palmada na nádega, depois tomou-me nos braços, como fazia muitas vezes, pelo prazer de me apertar e de me sacudir, repetindo sem parar :

— Tu não sabes que o nosso mundo é o mundo do “Porque sim”? Tu não sabes que neste mundo, desde o rei ao mendigo, toda a gente se comporta “Porque sim”? O mundo do “Porque sim”, do “Porque sim”, do “Porque sim”!

Deixei-o fazer porque sabia que nesses momentos mais valia não protestar, mas esperar que isto lhe passasse. Acabei por lhe dizer com certa firmeza:

— Amo-te. É a única coisa que sei e isso basta-me.

Acalmou-se de repente e respondeu-me simplesmente:

— Tens razão.

A noite chegou sem que tornássemos a falar nem em política nem na sua capacidade.

Uma vez só, depois de muito reflectir, concluí ser possível que as coisas fossem como ele dizia; mas que era mais que certo que não me tornaria a falar em política por pensar que não a compreenderia e por recear que o comprometesse com qualquer indiscrição. Não que eu imaginasse que ele mentia; sabia, por experiência própria, que pode acontecer a toda a gente ter dias em que o mundo inteiro parece voar em estilhas, em que, como ele dizia, nada se compreende, nem mesmo o Pai Nosso. Eu também, quando tinha algum dissabor, chegava a sentir a mesma impressão de aborrecimento, de desagrado e de prostração. Mas, evidentemente, devia haver outro motivo para que me recusasse a participar na sua vida mais secreta: a falta de confiança, como já disse, tanto na minha inteligência como na minha discrição. Com o tempo compreendi, demasiadamente tarde, que me enganava e que ou fosse por inexperiência da idade ou por fraqueza de carácter, estes estados mórbidos tomavam uma importância particular para ele.

Nesse momento pensava que não o devia importunar com a minha curiosidade. E foi o que fiz.

8

Não sei porquê, lembro-me muito bem do tempo que estava naqueles dias. Fevereiro, que tinha sido frio e chuvoso, acabara; com Março haviam chegado os primeiros dias calmos. Uma rede cerrada de finas nuvens brancas velava inteiramente o céu, ferindo os olhos quando se saía de casa para a rua. O ar era doce mas ainda dorido dos friores do Inverno. Eu caminhava com prazer e alheamento neste ar seco, magoado e sonolento. De vez em quando chegava a retardar o passo e fechar os olhos ou parar a contemplar as coisas mais insignificantes: um gato branco e preto que alisava o pêlo no vão de uma porta, um ramo de loureiro caído, cortado pelo vento, um tufo de erva entre as pedras do passeio. O musgo que a chuva dos meses anteriores deixara nos rebordos das casas inspirava-me uma grande tranquilidade e confiança. Pensava que se este belo veludo cor de esmeralda podia viver numa tão fina camada de terra, a minha vida — que não tinha raízes mais profundas e se contentava em vegetar e se sustentar com tão pouco alimento, verdadeiro bolor, ela também ao pé de uma ruína — tinha alguma probabilidade de continuar a florir.