Estava convencida de que todas as desagradáveis aventuras dos últimos tempos tinham acabado definitivamente, que não tornaria a ver Sonzogne nem ouviria mais falar dos seus crimes, e que de futuro poderia gozar em paz a minha ligação com Jaime. Esta ideia dava-me a impressão de sentir pela primeira vez o verdadeiro sabor da vida, feito de um doce tédio, de esperança e de disponibilidade.
Começava mesmo a entrever a possibilidade de mudar de existência. No fundo, o meu amor por Jaime desinteressava-me dos outros homens, de maneira que os meus encontros ocasionais tinham perdido até o aguilhão da curiosidade e da sensualidade. Mas eu pensava ser inútil tentar modificar-nos e que eu não mudaria senão quando, sem choques nem violências, pela própria ordem natural das coisas, criasse hábitos, sentimentos e interesses novos.
Não via outra maneira de mudar de existência, não sentia de momento qualquer desejo de aumentar nem de melhorar materialmente a minha condição e não tinha a impressão de que, transformando a minha vida, eu própria melhorasse qualquer coisa.
Um dia contei a Jaime estas minhas reflexões. Ouviu-me atentamente, depois observou-me:
— Pareces contradizer-te. Não dizes sempre que querias ser rica, ter uma bela casa, um marido e filhos? São coisas legítimas: ainda é possível que as obtenhas, mas nunca as conseguirás se raciocinares dessa maneira.
— Não digo que queria, digo que teria querido. — respondi-lhe. — Quer dizer que se tivesse podido optar antes de ter nascido, não teria escolhido isto que sou. Mas nasci naquela casa, de uma mãe como aquela, nesta situação, e apesar de tudo, sou a que sou.
— O quê?
— Parece-me absurdo querer ser outra. Desejaria ser outra unicamente se, tornando-me outra, pudesse continuar a ser eu própria… quer dizer, se pudesse realmente desfrutar da mudança. Mas ser outra só para não ser eu, não vale a pena.
— Vale sempre a pena — murmurou. — Senão por ti, pelos outros.
— E depois — continuei sem responder à sua interrupção — o que conta são os factos. Imaginas que eu não poderia ter encontrado um amante rico como a Gisela? Ou até mesmo casar? Se não o fiz, quer dizer que no fundo, apesar de todas as minhas tagarelices, não o desejei verdadeiramente.
— Casarei eu contigo — disse a brincar beijando-me. Sou rico. A morte da minha avó, que não pode demorar muito, tornar-me-á herdeiro de muitos hectares de terra, de uma casa no campo e de outra na cidade. Montaremos casa com todo o rigor, convidarás senhoras da vizinhança em dias certos, teremos uma cozinheira, uma criada de quarto, um automóvel, até mesmo havemos de descobrir que somos nobres e far-nos-emos chamar marqueses ou condes.
— Contigo nunca se pode falar a sério; estás sempre a brincar! — disse-lhe repelindo-o.
Numa destas tardes fui ao cinema com Jaime. A volta subimos para um eléctrico muito cheio. Jaime vinha para casa comigo e íamos jantar ao restaurantezinho das fortificações. Tirou os bilhetes e furou por entre as pessoas que enchiam a coxia do eléctrico. Quis segui-lo, mas perdi-o de vista. Enquanto agarrada a um assento, o procurava com os olhos, senti tocarem-me na mão. Olhei e vi Sonzogne sentado ao pé de mim.
Fiquei sufocada. Senti-me empalidecer e mudar de expressão. Olhava-me com a sua intolerável fixidez. Levantou-se e disse-me por entre os dentes:
— Queres sentar-te?
— Obrigada, desço já — balbuciei.
— Senta-te, mesmo assim!
— Obrigada — repeti, sentando-me.
Se não me tivesse sentado, julgo que teria desmaiado. Ficou de pé à minha frente como que a espiar-me, segurando-se com uma mão ao meu banco e com a outra ao que estava à minha frente. Nada tinha mudado; trazia a mesma gabardina de sempre, atada na cintura, e os seus maxilares tinham o mesmo estremecimento maquinal. Fechei os olhos — e durante um momento procurei ordenar os meus pensamentos. Lembrei-me da minha confissão e pensei se, como desconfiara, o padre tinha falado, a minha vida não estava muito segura.
Esta ideia não me assustou. Mas ele, de pé ao meu lado, assustava-me, ou, mais exactamente, fascinava-me, subjugava-me. Sentia que nada lhe podia recusar; que entre mim e ele havia um laço, não de amor seguramente, mas talvez mais forte do que aquele que me unia a Jaime. Ele também o sabia por instinto: portava-se como um dono.
— Vamos para tua casa! — disse-me passado um instante.
— Como quiseres! — respondi docilmente, sem hesitar.
Jaime aproximou-se depois de se ter desembaraçado com esforço das pessoas que o comprimiam. Sem dizer uma palavra veio colocar-se exactamente ao lado de Sonzogne, agarrando-se ao mesmo banco que ele; os seus dedos magros e longos quase afloravam os dedos curtos e grossos de Sonzogne. Uma sacudidela do eléctrico atirou-os um contra o outro e Jaime desculpou-se delicadamente. Comecei a sofrer por os ver assim lado a lado, tão perto e tão ignorantes um do outro; de repente disse a Jaime, voltando-me ostensivamente para ele, de maneira a que Sonzogne não pudesse duvidar de que era com ele que eu falava:
— Olha! Lembro-me agora de que marquei encontro esta noite com uma pessoa; é melhor que nos separemos.
— Se quiseres acompanho-te a casa.
— Não, esperam-me na paragem do eléctrico.
Não era uma invenção. Continuava, como já disse, a trazer homens para casa e Jaime sabia-o.
— Como quiseres — disse tranquilamente. — Então ver-nos-emos amanhã.
Disse-lhe que sim com os olhos e perdi-o de vista por entre os passageiros do eléctrico.
Por um momento, ao vê-lo afastar-se, fui tomada de um grande desespero. Pensava — sem saber porquê — que era a última vez que o via.
“Adeus”, murmurei para mim mesma. “Adeus, meu amor.” Desejaria gritar-lhe que parasse, que voltasse, mas nenhum som saiu da minha boca. O carro parou e pareceu-me vê-lo descer. Nem Sonzogne nem eu abrimos a boca durante todo o trajecto. Acalmei-me e pensei que não era possível que o padre tivesse falado. Por outro lado, reflectindo nisso, não lamentava muito ter encontrado Sonzogne. Este encontro permitia livrar-me de uma vez para sempre das suspeitas a respeito da minha confissão.
Quando descemos andei uns passos sem olhar para trás. Sonzogne vinha ao meu lado:
— Que me queres? Porque voltaste? — acabei por dizer.
— Foste tu quem me disse para voltar — disse-me com admiração.
Era verdade; com o medo esquecera-o. Aproximou-se, pegou-me no braço e apertou-mo com força. Contra vontade minha, comecei a tremer dos pés à cabeça.
— Quem é este homem? — perguntou-me.
— Um dos meus amigos.
— E o Gino? Tornaste a vê-lo?
— Nunca mais.
Olhou à sua volta, desconfiado.
— Não sei porquê — disse-me —, há uns dias que tenho a impressão de ser seguido. Só há duas pessoas que me podem ter vendido: Gino e tu.
— Porquê o Gino? — murmurei.
O meu coração batia desordenado.
— Ele sabia que eu devia levar o objecto àquele ourives… disse-lhe até mesmo o nome… Ele não sabe ao certo que fui eu quem o matou, mas pode muito bem ter deduzido.
— Gino não tem interesse em te denunciar; ficava também ele envolvido no caso.
— É o que eu penso — disse-me por entre dentes.
— Quanto a mim — continuei com a voz mais tranquila — podes ter a certeza de que nada disse… não sou parva… prendiam-me a mim também.
— Espero por ti que não o faças! — disse-me num tom ameaçador. Depois acrescentou: — Tornei a ver Gino… ele disse-me, brincando, que sabia muitas coisas. Não me sinto tranquilo… É um crápula.