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— Naquela noite trataste-o muito mal; com certeza que te odeia agora — disse-lhe.

E sentia, enquanto falava, uma vaga esperança de que Gino realmente o tivesse denunciado.

— Aquele foi um bom soco! — declarou com vaidade. — Doeu-me a mão durante dois dias!

— Gino não te denunciará — disse eu como conclusão. — Não lhe interessa, e além disso tem muito medo de ti.

Falávamos em surdina, caminhando ao lado um do outro sem nos olharmos. Era ao entardecer; uma bruma azulada envolvia as muralhas enegrecidas, as ramadas brancas dos plátanos, as casas amareladas, a longa perspectiva das avenidas. Quando chegamos à minha porta senti pela primeira vez a impressão de atraiçoar Jaime. Desejaria dar-me a ilusão de que Sonzogne era um homem qualquer entre muitos; mas sabia não ser verdade. Entrei no vestíbulo, empurrei a porta e no escuro parei, voltei-me para Sonzogne e declarei-lhe :

— Olha… é melhor que te vás embora.

— Porquê?

Apesar do medo que me inspirava, desejava dizer-lhe a verdade toda:

— Porque amo outro e não o quero enganar.

— Quem? O que estava contigo no “eléctrico”?

— Não… outro… tu não o conheces. Mas agora faz-me o favor de me deixares e de te ires embora.

— E se eu não quiser?

— Tu não compreendes que há coisas que não se podem obter pela força? — comecei a dizer. Mas não pude acabar. Não sei como, sem que a escuridão me deixasse vê-lo e ao seu gesto, recebi na cara uma tremenda bofetada.

— Anda! — disse-me.

De cabeça baixa dirigi-me rapidamente para a escada. Segurava-me outra vez pelo braço; parecia que me sustinha e me fazia voar. A cara ardia-me, mas sobretudo eu tinha um horrível pressentimento. Esta bofetada cortava o ritmo feliz deste último período da minha vida; as dificuldades e os terrores recomeçavam.

Tomou-me um tal desespero que decidi escapar-me de qualquer maneira. Sairia de casa nesse mesmo dia; iria refugiar-me em qualquer parte. Em casa de Gisela ou num quarto alugado.

Pensava nisto com tanta intensidade que nem reparei que entrava no meu quarto. Encontrei-me — quase diria acordei — sentada na beira da cama, enquanto Sonzogne, com os seus gestos meticulosos, tirava as peças de roupa uma por uma e as punha em cima da cadeira com método. A cólera passara-lhe.

— Quis vir mais cedo — disse-me tranquilamente —, mas não pude. No entanto pensei sempre em ti.

— E que pensaste? — perguntei-lhe maquinalmente.

— Que somos feitos um para o outro — disse-me num tom estranho, parando de se despir e ficando com o colete na mão. — Vim mesmo para te fazer uma proposta.

— Qual?

— Tenho dinheiro. Vamos os dois para Milão, onde tenho muitos amigos. Vou lá montar uma garagem. E em Milão podemo-nos casar.

Fui tomada de uma tal fraqueza que fechei os olhos. Era a primeira vez, depois de Gino, que me propunham casamento; e quem me fazia esta proposta era Sonzogne! Desejara tanto uma vida normal, com um marido e filhos, e eis que ma ofereciam. Mas era uma normalidade reduzida a uma espécie de concha no interior da qual tudo era anormal e aterrador. Disse-lhe molemente:

— Porquê? Mal nos conhecemos; só me viste uma vez…

Respondeu-me sentando-se ao meu lado e segurando-me pela cintura:

— Ninguém me conhece melhor do que tu… sabes tudo a meu respeito.

Atravessou-me o espírito a ideia de que ele estivesse comovido e quisesse mostrar que me amava e que eu devia amá-lo. Mas em nada me baseava, porque nada na sua atitude me revelava semelhante sentimento.

— Pouco sei de ti — disse-lhe em voz baixa. — Só sei que mataste aquele homem!

— E depois — continuou como se falasse consigo — estou cansado de estar só… Quando se vive só acaba-se sempre por fazer alguma asneira.

Disse-lhe passado um momento:

— Assim de repente não te posso responder nem sim nem não… Dá-me algum tempo para reflectir.

Com grande admiração minha, respondeu-me, de dentes cerrados:

— Reflecte, reflecte, não há pressa.

Depois continuou a despir-se.

O que me ferira fora sobretudo a frase: “Somos feitos um para o outro.” Agora perguntava a mim mesma se ele não teria razão apesar de tudo. A quem poderia eu aspirar de futuro senão a um homem como ele? Por outro lado, não era verdade que um laço obscuro que eu reconhecia e temia me ligava a ele? Surpreendi-me repetindo em voz baixa: “Acabou! Acabou!” e sacudindo desesperadamente a cabeça disse-lhe em voz clara:

— Para Milão? Mas tu não tens medo que te procurem?

— Disse isso por dizer… Na realidade eles nem sabem que eu existo!

De repente a lassidão que me tomara os membros desapareceu: senti-me muito forte e muito decidida. Levantei-me, tirei o casaco e fui pendurá-lo no bengaleiro. Como habitualmente, fechei a porta à chave, depois fui à janela e puxei as cortinas. De pé em frente do espelho, comecei a desabotoar o vestido. Mas interrompi-me e voltei-me para Sonzogne. Estava sentado na beira da cama a tirar os sapatos.

— Espera um momento… — disse-lhe afectando um tom despreocupado — estou à espera de uma pessoa, é melhor eu prevenir minha mãe para que a mande embora.

Não respondeu nem eu lhe dei tempo. Saí do quarto fechando a porta atrás de mim. Fui à sala grande.

Minha mãe estava a coser à máquina ao pé da janela; havia já algum tempo que, para se distrair, tinha recomeçado a trabalhar um pouco. Disse-lhe depressa em voz baixa: — Telefona-me amanhã de manhã para casa da Gisela ou da Zelinda.

Zelinda era dona de uma hospedaria para onde eu levara algumas vezes os meus amantes: minha mãe conhecia-a.

— Mas porquê?

— Vou-me embora para lá — disse-lhe. — Quando aquele homem perguntar onde estou, diz-lhe que nada sabes.

Minha mãe olhava-me de boca aberta, enquanto eu tirava do bengaleiro o casaco curto de peles, meio pelado, que lhe pertencia depois de ter sido meu.

— Sobretudo — acrescentei — não lhe digas onde estou, era capaz de me matar!

— Mas…

— O dinheiro está no sítio do costume… suplico-te que nada digas e telefona-me amanhã de manhã.

Saí à pressa, na ponta dos pés, e desci a escada. Uma vez na rua comecei a correr. Sabia que Jaime a esta hora estava em casa e queria chegar antes que ele saísse com os amigos, como fazia sempre depois do jantar. Tomei um táxi e dei a direcção de Jaime. Compreendi bruscamente que não fugia tanto de Sonzogne como de mim própria, obscuramente atraída por esta violência e por este furor. Lembrei-me do grito dilacerante, misto de horror e de volúpia, que soltara na primeira vez em que Sonzogne me tinha possuído; disse a mim mesma que nesse dia ele me havia subjugado como nunca nenhum homem o fizera até então, nem mesmo Jaime. “Sim, não pude deixar de concluir, nós somos verdadeiramente feitos um para o outro, mas como o corpo é feito para o precipício que faz virar a cabeça, turvar a vista e finalmente o atrai para um fundo vertiginoso.” Subi a escada a quatro e quatro, cheguei ofegante e perguntei por Jaime à velha criada que me veio abrir a porta.

Olhou-me com ar assustado, não disse palavra e foi-se embora, deixando-me só.

Pensando que teria ido prevenir Jaime, entrei no vestíbulo e fechei a porta. Ouvi então um cochichar atrás do reposteiro que separava o vestíbulo do corredor. Depois o reposteiro levantou-se e vi aparecer a viúva Medolaghi. Esquecera-a depois da primeira e única vez em que a vira. A sua maciça silhueta negra, a face branca, os seus olhos circundados de negro surgindo bruscamente diante de mim inspiraram-me nesse momento, não sei porquê, um arrepio, como se tivesse visto uma aparição aterradora. Disse-me rapidamente, falando-me de longe: