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Respondeu-me com voz desagradáveclass="underline"

— Mas eu não me ocupo de política e esse guarda cumpria o seu dever… Esse homem tinha mulher e filhos.

— Se ele se ocupa de política deve ter as suas razões — disse-lhe. — E o agente já devia supor que, antes de se deixar engaiolar, um homem tenta seja o que for… Pior para ele!

Sentia-me tranquila porque me parecia ver Jaime a caminhar livremente pelas ruas da cidade e alegrava-me já ao pensar no momento em que ele me chamasse às escondidas e eu o tornasse a ver. A minha calma parecia desesperar Astárito:

— Mas havemos de o apanhar! — gritou bruscamente. — Então imaginas que não o apanhamos?

— Eu nada imagino… Estou contente por ele se ter escapado… Só isso.

— Havemos de o apanhar e podes ter a certeza de que isto não ficará assim.

Passado um momento disse-lhe:

— Sabes porque estás tão furioso?

— Não estou furioso!

— Porque esperavas que o tivessem apanhado e querias fazer valer a tua generosidade comigo e com ele… e em vez disso ele escapou-te. É isto que te enfurece.

Vi-o levantar os ombros com fúria. Depois o telefone tocou e Astárito atendeu com ar aliviado. Era um bom pretexto para interromper uma conversa embaraçosa. Logo às primeiras palavras vi o seu rosto desanuviar-se e tomar uma expressão mais serena. E isso, mesmo sem saber porquê, pareceu-me de mau agouro. O telefonema demorou bastante tempo, mas Astárito não respondeu senão “Sim” e “Não”, se bem que eu não percebesse a que perguntas.

— Lamento-o por ti — disse pousando o auscultador —, mas a primeira comunicação referente à prisão desse estudante era errada. Para maior segurança a polícia tinha mandado agentes não só à casa dele mas também à tua… assim estavam mais certos de o apanharem. Com efeito prenderam-no em casa da viúva que lhe alugava o quarto. Na tua casa, pelo contrário, os guardas encontraram um homem baixo, louro, com pronúncia do Norte, que logo que os viu, em vez de lhes mostrar os seus papéis, como eles lhe pediram, disparou e fugiu. De momento julgaram que era ele. Tratava-se evidentemente de alguém que tinha contas a ajustar com a polícia.

Senti-me desfalecer. Nesse caso Jaime estava preso e Sonzogne convencido de que o denunciara. Qualquer pessoa que me tivesse visto desaparecer e os agentes virem logo depois da minha saída, teria pensado a mesma coisa. Jaime estava na prisão e Sonzogne procurava-me para se vingar! Fiquei tão aturdida com este golpe que só pude murmurar: “Pobre de mim”, dando uns passos para a porta.

Devia ter ficado muito pálida porque Astárito perdeu o ar triunfante e satisfeito e aproximou-se de mim dizendo-me com ansiedade:

— Senta-te um instante. Conversemos! Nada há irreparável!

Abanei a cabeça e agarrei o puxador da porta. Astárito deteve-me e balbuciou:

— Ouve, prometo-te que farei o impossível; eu mesmo o interrogarei e se ele nada praticou de grave darei ordem para o libertarem o mais depressa possível; está bem assim?

— Sim, está bem — respondi com voz apagada. — E acrescentei com esforço: — Por tudo o que fizeres já sabes que te ficarei reconhecida.

Agora sabia que Astárito faria, como tinha dito, tudo o que lhe fosse possível para libertar Jaime e eu não desejava outra coisa que ir-me embora, sair o mais depressa possível daquele horrível Ministério. Mas Astárito perguntou-me com um escrúpulo policiaclass="underline"

— A propósito… se tens alguma razão para recear o homem que encontraram na tua casa diz-me o seu nome e isso facilitará a prisão.

— Não sei como se chama — respondi. E comecei a andar.

— Seja como for — insistiu — seria melhor que te apresentasses espontaneamente no comissariado para dizeres o que sabes. Eles vão pedir-te para ficares à sua disposição e depois deixam-te ir embora. Mas se não fores lá… Pior para ti!

Respondi-lhe que o faria e disse-lhe adeus. Ele não fechou logo a porta e ficou a ver-me afastar ao longo do corredor.

9

Uma vez na rua comecei a andar depressa, como se fugisse, até uma praça que havia próxima. Quando cheguei ao meio da praça fiquei sem saber para onde ir e pensei onde me iria refugiar. De momento tinha pensado em Gisela; mas a casa dela era longe e sentia-me tão fraca que as pernas se me vergavam. Por outro lado não estava certa de que Gisela me recebesse de boa vontade. Restava Zelinda, a dona da hospedaria de quem falara a minha mãe quando saí de casa. Zelinda era uma amiga; pára mais a sua casa era ali perto: decidi-me por ela.

Zelinda morava num prédio amarelo igual a outros que dominavam a Praça da Gare. Esta casa de Zelinda distinguia-se das outras pela escada mergulhada numa quase total escuridão, mesmo às primeiras horas da manhã. Não havia elevadores nem janelas: subia-se às escuras, acotovelando de vez em quando as pessoas que desciam e se agarravam ao mesmo corrimão. Um cheiro a cozinha empestava eternamente o ar; mas era o de uma cozinha apagada há muitos anos e onde os aromas tinham tido tempo para se decomporem neste ar gelado e tenebroso. Subia, com as pernas moles e o coração partido, esta escada que tantas vezes trepara, abraçada a algum amante impaciente. Zelinda abriu-me a porta e eu disse-lhe:

— Preciso de um quarto para esta noite.

Era uma mulher corpulenta, que a gordura envelhecera precocemente, dando-lhe aparência de mais idade. Trôpega, com manchas vermelhas nas faces doentias, olhos azuis lacrimejantes e um cabelo ralo e alourado, sempre despenteado e esfarripado, subsistia nela, no entanto, não sei que graciosidade afectuosa, que lhe iluminava o rosto como um reflexo de luz em água estagnada ao pôr do Sol.

— Tenho um quarto — disse-me. — Estás só?

— Estou.

Entrei. Ela fechou a porta e acompanhou-me tropeçando, baixa e larga, com um velho penteador, o carrapito meio despenteado caído pelas costas e cheio de ganchos mal espetados. O apartamento era tão gelado como a escada. Mas o cheiro a cozinha era autêntico: era o de guisado saboroso. Zelinda, que alugava quartos à hora, gostava muito de mim, não sei porquê. Frequentemente depois das minhas habituais visitas ela retinha-me para conversar e dava-me bolos e licor. Era uma rapariga envelhecida e ninguém a deve ter amado nunca porque desde muito nova a gordura a deformara. Adivinhava-se a sua virgindade pela timidez, a curiosidade e a maneira desajeitada como me perguntava pelos meus amores. Creio que ela, embora sem malícia nem inveja, lamentava secretamente nunca ter feito o que se fazia nos seus quartos e que adoptava o ofício de alugar quartos para pouca permanência menos pela sofreguidão do lucro do que para assim satisfazer um desejo, talvez inconsciente, de não ser inteiramente excluída do paraíso, perdido para ela, das relações amorosas.

Ao fundo do corredor havia duas portas que eu conhecia bem. Zelinda abriu a da esquerda. Acendeu o lustre de três braços terminado por tulipas de vidro branco e foi fechar a janela. O quarto era grande e asseado. Mas a limpeza acusava impiedosamente o uso e a pobreza dos móveis, os rasgões do tapete, os remendos da colcha de algodão, os “gatos” do espelho, as falhas do lavatório. Ela olhou-me e perguntou-me:

— Não te sentes bem?

— Sinto-me bastante bem.

— Mas porque não dormes na tua casa?

— Não me apetece.

— Vamos a ver se adivinho — disse-me ela com ar amigo e malicioso: — Tens um desgosto. Esperavas alguém que não veio.

— É possível.

— Vamos a ver ainda se tenho razão ou não. Este alguém é o oficial moreno com quem cá vieste a última vez.

Não era a primeira pergunta deste gênero que Zelinda me fazia. Com a garganta apertada pela angústia, respondi-lhe ao acaso: