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— Tens razão… E então?

— Então nada, mas, como vês, compreendi depressa… Assim que te vi, adivinhei logo o que te tinha acontecido. Não te rales. Se não veio deve ter as suas razões. Os militares, já sabes, nem sempre estão livres.

Eu não respondi. Ela olhou-me durante um momento, depois, com ar hesitante e afectuoso, disse-me:

— Queres fazer-me companhia e jantar comigo? Tenho um bom jantar.

— Não, obrigada — respondi. — Já jantei.

Olhou-me e fez-me uma festa na cara. Depois, com a expressão prometedora e misteriosa de certas tias velhas falando com um sobrinho miúdo, disse-me:

— Vou dar-te uma coisa que com certeza não recusarás. Tirou da algibeira um molho de chaves, foi à cômoda e abriu a gaveta, voltando-me as costas.

Eu entreabrira o casaco, e com a mão na anca, apoiando-me à mesa, olhava Zelinda, encafuada na sua gaveta. Lembrei-me de que Gisela vinha frequentemente a este quarto com os seus amantes e também de que Zelinda não gostava dela. Gostava de mim por ser eu; mas não gostava de toda a gente. Senti-me reconfortada. “Apesar de tudo”, pensava, “não há só neste mundo polícias e ministérios, prisões e outras coisas parecidas inanimadas e cruéis.” Entretanto Zelinda fechara a gaveta com cuidado e vinha para junto de mim dizendo:

— Toma. Isto não recusas com certeza.

Pousou qualquer coisa em cima da mesa. Olhei e vi cinco cigarros — cigarros bons com filtro —, um punhado de bombons embrulhados em papel de cor e quatro bolinhos de amêndoa em forma de frutas.

— Está bem? — perguntou-me com uma palmadinha na cara.

Embaraçada, balbuciei:

— Está bem, obrigada!

— De nada, de nada. E se precisares de alguma coisa não tens mais do que chamar, sem cerimônia.

Uma vez só, senti-me gelada. Não tinha sono e não me queria ir deitar. Por outro lado, neste quarto glacial, onde o frio do Inverno parecia conservar-se durante anos, como nas igrejas e nas caves, não havia outra coisa a fazer. Das outras vezes estes problemas nem se punham: o homem que me acompanhava e eu não desejávamos outra coisa que enfiarmo-nos nos lençóis e aquecermo-nos mutuamente; se bem que não experimentasse qualquer sentimento por estes amantes de acaso. O acto do amor em si absorvia-me e mergulhava-me na sua magia. Agora parecia-me incrível ter podido amar e ser amada no meio de um mobiliário tão lúgubre, de aspecto tão sórdido. Por certo que o ardor dos sentimentos nos enganara, aos meus companheiros e a mim, tornando estes objectos, tão paradoxalmente estranhos, agradáveis, familiares. Veio-me à ideia que se não pudesse tornar a ver Jaime a minha vida seria como este quarto. Ao olhá-la de uma forma objectiva, sem ilusões, a minha vida nada tinha de belo nem de íntimo; mais até: como o quarto de Zelinda, ela compunha-se de coisas estragadas, desagradáveis e frias. Arrepiei-me e comecei lentamente a despir-me.

Os lençóis estavam gelados e pareciam húmidos. A tal ponto que quando me deitei tive a impressão de deixar o meu corpo marcado em argila molhada. Fiquei muito tempo absorta a reflectir, enquanto que, lentamente, a cama aquecia. O caso de Sonzogne veio desviar os meus pensamentos e tentei analisar os motivos e as consequências desta tenebrosa história. Agora Sonzogne estava persuadido de que eu o denunciara; não havia dúvida de que as aparências estavam todas contra mim. Mas seriam só as aparências? Lembrei-me da sua frase: “Tenho a impressão de que me seguem” e perguntei a mim própria se no fim de contas o padre não teria falado. Não me parecia; mas até agora não podia provar o contrário.

Continuando a pensar em Sonzogne pus-me a imaginar o que se teria passado na minha casa depois da minha saída: Sonzogne, que esperava, impacientava-se, vestia-se aquando da entrada dos dois agentes. Da mesma maneira que com o crime de Sonzogne, esta reconstituição dava-me um prazer insaciável e obscuro. A minha imaginação apresentou-me os vários aspectos da cena de tiros, cujos pormenores me deliciavam. Sem dúvida, na luta tomava o partido de Sonzogne. Fremia de alegria vendo o polícia ferido cair, suspirei de alívio vendo Sonzogne fugir; seguia-o com ansiedade ao descer as escadas e não me sentia tranquila enquanto o não via desaparecer na distância escura da avenida. Acabei por me cansar desta espécie de filme que imaginei e apaguei a luz. Já das outras vezes reparara que a cama estava encostada a uma porta de comunicação que dava para um quarto contíguo. Logo que apaguei a luz vi filtrar-se um raio luminoso por entre os batentes mal fechados. Apoiei-me nos cotovelos sobre a almofada, passei a cabeça por entre as grades de ferro da cama e espreitei pela fresta. Não o fazia por curiosidade, pois já sabia de antemão o que poderia ver ou ouvir do outro lado; era mais para fugir aos meus pensamentos e à solidão, que procurava, mesmo só espreitando, uma companhia no quarto vizinho. Mas durante um bom bocado ninguém vi, em frente da fresta da porta havia uma mesa redonda: a luz do lustre caía sobre esta mesa atrás da qual entrevi o reflexo de um espelho de guarda-fato. No entanto ouvia falar; eram as palavras habituais que eu tão bem conhecia, as perguntas sobre a terra natal, a idade e o sobrenome. A voz da mulher era tranquila e reticente; a do homem rápida e trêmula. As vozes vinham de um canto do quarto: talvez estivessem já deitados. À força de olhar sem ver nada, pôs-se-me uma dor na nuca e estava a ponto de abandonar aquela posição quando a mulher apareceu e se foi pôr do outro lado da mesa em frente do espelho, que estava na sombra. Estava de pé, nua, de costas para mim, mas a mesa só me permitia vê-la da cintura para cima. Devia ser muito nova: via umas costas magras, duras, sem graça, de uma brancura anêmica, encimadas por uma cabeleira crespa. Pensei que ela não devia ter ainda vinte anos, mas tinha o seio caído e talvez até já tivesse sido mãe. Devia ser urna das esfomeadas raparigas que rondavam os bosques das praças municipais, ao longo da estação, sem chapéu e frequentemente sem casaco, grosseiramente pintadas e esfarrapadas, com enormes sapatos de solas rotas. Pensava que, quando se ria, devia mostrar as gengivas. Vieram-me estas ideias todas sem que eu reflectisse, porque ao ver estas pobres costas nuas me sentia reconfortada e tive a impressão de que gostava desta rapariga e compreendia bem de mais os sentimentos dela ao olhar-se ao espelho do guarda-fato. Mas o homem disse com uma voz brutaclass="underline"

— Pode saber-se o que estás aí a fazer?

Ela afastou-se. Vi-a um momento de perfil, as costas curvas, o peito chato, exactamente como eu a imaginara. Depois desapareceu e passado um momento a luz apagou-se.

Senti extinguir-se na minha alma o vago sentimento que a rapariga me suscitara e tornei a encontrar-me só na grande cama ainda gelada, no quarto escuro e cheio de objectos vulgares e feios. Pensei naqueles dois, do outro lado da parede, que adormeceriam juntos daí a momentos e ela debaixo do seu companheiro, o queixo sobre o seu ombro, as pernas entrelaçadas nas suas, o braço à volta da cintura, a mão na virilha, os dedos anichados nas pregas do ventre, como raízes procurando a vida nas profundezas da terra. Senti-me de repente como uma planta desenraizada e atirada para um pavimento de pedra lisa onde irá estiolar e morrer. Jaime fazia-me falta. Estendia a mão e parecia sentir um grande espaço gelado, inabitado, que me rodeava por todos os lados e no meio do qual me encolhia, só e abandonada. Sentia um violento e doloroso desejo de me agarrar a ele, mas ele não estava presente e tinha a impressão de estar viúva. Comecei a chorar estendendo os braços debaixo dos lençóis e imaginando abraçá-lo. Acabei por adormecer não sei como.

Tive sempre o sono pesado; por isso na manhã seguinte, quase me admirei ao acordar na cama de Zelinda com um raio de sol sobre a almofada. Ainda estava meia atordoada quando ouvi tocar o telefone no corredor. Zelinda atendeu. Chamou-me e depois bateu à porta. Saltei da cama, e, em camisa e com os pés nus, corri para o corredor. Zelinda voltara para a cozinha. Peguei no auscultador e ouvi a voz da minha mãe a perguntar: