— És tu, Adriana?
— Sim.
— Mas porque te foste embora? Aqui aconteceram coisas!… Podias ao menos ter-me avisado! Tive tanto medo!
— Já sei tudo — disse rapidamente. — É inútil falar agora nisso.
— Estava em cuidados contigo! — prosseguiu. — Está cá o Sr. Diodatti?
— O Sr. Diodatti?
— Sim. Veio esta manhã muito cedo e quer ver-te por força. Diz que te espera.
— Diz-lhe que vou já. Dentro de um minuto estou lá. Repus o auscultador, corri para o quarto e vesti-me à pressa. Não esperava que Jaime fosse posto em liberdade tão depressa e senti-me menos feliz do que se estivesse esperando alguns dias ou uma semana pela sua libertação. Uma libertação tão rápida inspirava-me desconfiança; não podia deixar de sentir uma vaga apreensão. Mas acalmei a minha inquietação pensando que, além de tudo, podia ser que Astárito tivesse conseguido soltá-lo imediatamente, como mo tinha prometido. De resto estava impaciente por vê-lo e esta impaciência era feita de um sentimento de felicidade ligeiramente angustiante.
Acabei de me vestir, meti na mala os cigarros, os bombons e os bolinhos, para não magoar Zelinda, depois entrei na cozinha para me despedir da dona de casa.
— Estás mais bem disposta agora? — disse-me. — Passou-te o mau humor?
— Estava cansada… Até qualquer dia.
— Julgas que não ouvi o que dizias ao telefone? O Sr. Diodatti… mas espera… toma uma chávena de café.
Já estava fora de casa e ela ainda falava atrás de mim. No táxi, toda curvada no banco com as mãos em cima da mala, estava preparada para descer logo que o carro parasse, porque temia encontrar um ajuntamento em frente da minha porta, depois dos tiros de Sonzogne. Perguntava a mim própria se seria prudente entrar em casa; Sonzogne podia vir de um momento para o outro para se vingar… Senti que isso não me importaria. Se Sonzogne se queria vingar, que o fizesse; eu queria ver Jaime e estava disposta a não me esconder mais por actos que não tinha praticado.
Ninguém encontrei em frente da casa, nem ninguém na escada. Impetuosamente irrompi pela sala e vi minha mãe, que cosia à máquina, sentada ao pé da janela. O sol entrava a jorros pelos vidros da janela; o gato da casa, sentado em cima da mesa, alisava as patas. Minha mãe parou logo de coser e disse-me:
— Até que enfim… Não podias ao menos ter-me dito que ias à polícia?
— Que polícia? Mas que estás a dizer?
— Eu teria ido contigo. Não teria passado por este susto!
— Mas eu não saí para ir chamar a polícia! — disse-lhe, irritada. — Saí por sair. Os agentes procuravam outro. Quer dizer que este também tinha alguma coisa na consciência.
— Não queres dizer-me, nem mesmo a mim? — respondeu-me com um olhar de reprovação maternal.
— Mas o que?
— Não serei eu quem irá contar. Mas tu não quererás que eu acredite que saíste só por sair. Aliás, os polícias vieram justamente alguns minutos depois de teres saído.
— Mas não é verdade. Eu…
— De resto, fizeste bem. Há por aí muitos espiões. Sabes o que um dos guardas me disse?
— “Esta cara não me é estranha”.
Compreendi que não havia maneira de a persuadir de que eu não saíra para denunciar Sonzogne. Nada havia a fazer.
— Está bem. Está bem — interrompi-a bruscamente. — E o ferido… como é que o levaram?
— Qual ferido?
— Disseram-me que havia um moribundo.
— Informaram-te mal… Um dos polícias teve um raspão num braço com um tiro… fui eu quem lhe ligou a ferida… foi-se embora pelo seu pé. Mas se tu tivesses ouvido aqueles tiros! Foi na escada que eles dispararam. Toda a casa estremeceu de alto a baixo. Depois interrogaram-me. Mas eu disse que nada sabia.
— Onde está Diodatti?
— No teu quarto.
Se eu tive esta pequena conversa com minha mãe fora porque agora experimentava uma espécie de repugnância em ir ter com Jaime, como se pressentisse uma má notícia. Saí da sala e dirigi-me para o quarto. Estava mergulhado numa escuridão completa; mas mesmo antes de eu ter posto a mão no interruptor, ouvi a voz de Jaime que me dizia:
— Por favor, não acendas a luz.
Feriu-me o tom da sua voz, muito pouco alegre de verdade! Fechei a porta, aproximei-me da cama às apalpadelas e sentei-me aos seus pés:
— Sentes-te bem? — perguntei.
— Sinto-me muito bem.
— Não estás cansado?
— Não, não estou.
Previra um encontro diferente. Mas a verdade é que a alegria não se pode separar da luz. Nesta escuridão parecia-me que os meus olhos não podiam brilhar, a minha voz não podia soltar exclamações alegres, as minhas mãos não se podiam estender para reconhecer as formas queridas. Esperei um momento; depois inclinando-me sobre ele, murmurei-lhe:
— Que queres fazer? Queres dormir?
— Não.
— Queres que me vá embora?
— Não.
— Que fique ao pé de ti?
— Sim.
— Queres que me deite em cima da cama?
— Sim.
— Queres que nos amemos? — perguntei por perguntar.
— Sim.
Esta resposta surpreendeu-me porque, como já disse, ele nunca estava realmente disposto a fazer amor. Senti-me de repente perturbada e acrescentei com voz acariciadora:
— Gostas de fazer amor comigo?
— Sim.
— Vais amar-me sempre daqui em diante?
— Sim.
— E ficaremos juntos para sempre?
— Sim.
— Mas não queres mesmo que eu acenda a luz?
— Não.
— Não tem importância… Dispo-me às escuras.
Comecei a despir-me com o embriagador sentimento da vitória completa. Pensava que a noite passada na prisão lhe revelara bruscamente que me amava e que precisava de mim. Enganava-me, como se verá em seguida; se bem que pensasse que houvera uma ligação entre esta brusca condescendência e a prisão, não compreendia que esta mudança de atitude nada tinha que me pudesse envaidecer, ou simplesmente alegrar. O meu corpo, como um cavalo há muito tempo refreado, impelia-me impetuosamente para ele; estava impaciente por lhe fazer o alegre, o ardente acolhimento que um momento antes a obscuridade e a sua atitude me não tinham permitido.
Mas quando me aproximei e me inclinei sobre a cama para me estender ao seu lado, senti-o de repente tomar-me os joelhos com os braços e morder-me a anca esquerda até fazer sangue. Senti ao mesmo tempo uma dor aguda e uma sensação de desespero que se exprimia por esta dentada, como se não fôssemos dois amantes preparando-se para se amarem, mas dois danados que o ódio, o furor e a tristeza impelissem, no fundo de um inferno de um novo gênero, a morder-se um ao outro. A dentada foi tão grande que quase se podia dizer que ele me queria arrancar um bocado de carne. Enfim, se bem que eu quase gostasse que ele me mordesse e, a despeito do pouco amor que eu sentia nesta mordedura, me desse prazer, não pude suportar a dor e empurrei-o dizendo em voz baixa e magoada:
— Mas não… que fazes? Magoas-me.
Foi assim que acabou o meu ilusório sentimento de vitória. Em seguida, durante todo o tempo em que nos amamos, não dissemos uma palavra; mas a sua atitude não deixava por isso de me revelar obscuramente o verdadeiro porque do seu abandono, que ele me explicaria mais tarde pormenorizadamente. Compreendi que até então o que ele não aceitava não era tanto a minha pessoa como uma parte dele próprio levada a desejar-me; agora, pelo contrário, por um motivo que só ele sabia, deixava esta parte dele próprio, refreada até então, saciar-se livremente. Eu em nada contribuíra. Da mesma maneira que ele não me amava antes, também não me amava agora. Eu ou outra era a mesma coisa para ele. Agora como dantes eu não era mais do que um meio do qual ele fazia uso para se punir ou para se recompensar. Todas estas coisas, enquanto estivemos deitados no escuro, não as pensara; sentia-as na, minha carne e no meu sangue, da mesma maneira que algum tempo antes sentira que Sonzogne era um monstro, sem saber ainda nada do seu crime. Mas amava Jaime, e o meu amor era mais forte do que este sentimento. Admirou-me a violência e insaciabilidade do seu desejo, anteriormente tão avaro. Sempre pensara que ele se moderava um pouco por razões de saúde, porque era de compleição fraca. Por isso, depois de me ter possuído duas vezes, ao vê-lo recomeçar pela terceira vez, não pude deixar de lhe sussurrar ao ouvido: