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— Por mim, podes… mas vê lá não te faça mal.

Tive a impressão de que se riu e ouvi a sua voz murmurar-me:

— De futuro nada me pode fazer mal.

Este de “futuro” deu-me uma impressão fúnebre, se bem que até mesmo o prazer que eu encontrava nestes beijos foi quase suprimido e eu esperava com impaciência o momento em que lhe pudesse falar e saber enfim o que lhe acontecera. Depois do amor pareceu dormitar: mas talvez não dormisse. Esperei um tempo razoável e, fazendo um esforço tal que o coração quase me saltava do peito, perguntei-lhe em voz alta:

— Agora vais dizer-me o que te aconteceu.

— Nada me aconteceu.

— No entanto deve ter sucedido qualquer coisa.

Calou-se um momento, depois disse-me como se falasse consigo próprio:

— Depois disto tudo, suponho que tu também o deves saber. Pois bem! Aconteceu que depois das onze horas da noite eu tornei-me um traidor.

Estas palavras gelaram-me horrivelmente, não tanto por elas, como pela maneira como foram ditas.

— Um traidor? — balbuciei. — Porquê?

Respondeu-me no seu tom frio e lúgubre:

— Entre os seus companheiros de ideal político, o Sr. Diodatti era conhecido pela sua intransigência de opiniões e pela violência dos seus ódios. Consideravam muito simplesmente o Sr. Diodatti como um futuro chefe e ele estava de tal maneira certo de que faria boa figura em qualquer circunstância que quase desejava ser preso e posto à prova. Sim, porque o Sr. Diodatti pensava que a captura, a prisão e os outros sofrimentos são necessários na vida de um homem político como são necessários os longos cruzeiros, as tempestades e os naufrágios na vida de um homem do mar!… Mas à primeira onda, o marinheiro sentiu-se mal como qualquer criaturinha sem importância… Assim que se viu em frente de um polícia, sem mesmo esperar que o ameaçassem ou o espancassem, o Sr. Diodatti abandonou a carreira política e entrou na que podia chamar-se da denúncia.

— Tiveste medo! — gritei.

Respondeu-me com calma:

— Não. Nem sequer tive medo. Somente sucedeu-me aquilo que me aconteceu naquela famosa noite, contigo, quando querias que te explicasse as minhas ideias… bruscamente aquilo deixou de me interessar por completo. O que me interrogou pareceu-me quase simpático. Tinha interesse em saber certas coisas… e eu, nesse momento, não tinha interesse em esconder-lhas… então disse-lhas… simplesmente. Ou talvez — acrescentou depois de uns minutos de reflexão — não tão simplesmente como isso, mas logo, apressadamente, poderia dizer que quase com zelo. Mais um pouco e seria ele quem moderaria o meu entusiasmo!

Pensei em Astárito e pareceu-me estranho que Jaime o tivesse achado simpático.

— Mas quem te interrogou? — perguntei.

— Não o conheço. Um homem novo, com uma cara amarelada, olhos pretos, muito bem vestido. Devia ser um alto funcionário.

— E achaste-o simpático! — não me pude impedir de gritar, reconhecendo nesta descrição o próprio Astárito.

No escuro, disse-me ao ouvido:

— Devagarinho… não ele pessoalmente, mas a sua função. Mas sim, quando se renuncia a si mesmo, ou quando não somos aquilo que devíamos ser, o que conta é o que se é. Não sou eu o filho de um rico proprietário? E este homem, dentro das suas funções, não defende os meus interesses? Reconhecemos que éramos da mesma raça… solidários da mesma causa… Que imaginas? Que simpatizei com ele pessoalmente? Não, não… senti simpatia pela sua função… Senti que era eu quem lhe pagava, que era a mim que ele defendia; comparecendo perante a sua pessoa como acusado estava por detrás como patrão.

Ria, ou, melhor, dava umas risadinhas que arranhavam os meus ouvidos. Eu nada percebia, senão que acontecera qualquer coisa muito triste e que a minha vida estava de novo em risco.

Acrescentou passado um momento:

— Talvez eu me calunie… talvez eu tenha falado assim, porque nenhuma importância dava ao facto de não falar… Porque bruscamente tudo me pareceu absurdo e sem importância e porque não compreendia coisas nas quais deveria ter acreditado.

— Nada mais compreendias? — perguntei maquinalmente.

— Não… Quando muito compreendia as palavras como as compreendo agora, mas não os factos que essas palavras traduziam… E então… não se pode sofrer pelas palavras. As palavras não são mais que sons… E ninguém vai para a cadeia porque um burro zurrou ou a roda de um carro guincha. As palavras já não tinham valor para mim, pareciam-me todas iguais e absurdas. Ele queria palavras, eu dei-lhe tantas quantas ele queria.

— Mas então — objectei eu — se eram só palavras, que mal é que isso te pode fazer?

— Sim, mas, infelizmente, logo que foram pronunciadas essas palavras cessaram de ser simples palavras e passaram a ser factos.

— Porquê?

— Porque eu comecei a sofrer. Porque devo ter tido remorsos de as ter dito. Porque, compreendi, senti que dizendo essas palavras me tornara naquilo que se chama um traidor.

— Mas então porque as disseste?

Respondeu-me lentamente:

— Porque se fala quando se sonha? Dormia talvez… mas agora acordei.

Virávamos o assunto por todos os lados e voltávamos sempre ao mesmo ponto. Senti um desalento atroz e disse-lhe com esforço:

— Talvez te tenhas enganado; julgas ter dito sabe Deus o que é possível que não te tenhas comprometido.

— Não, não me engano — respondeu.

Calei-me um momento. Depois disse:

— E os teus amigos?

— Quais amigos?

— Túlio e Tomás.

— Nada sei a respeito deles — disse afectando indiferença. — Vão prendê-los.

— Não — gritei. — Não os prenderão.

Pensava que Astárito não se tinha com certeza aproveitado deste momento de fraqueza de Jaime. Pela primeira vez, no entanto, a ideia da prisão dos dois amigos fez-me entrever a gravidade de toda esta história.

— Porque não os prenderão? — disse ele. — Dei os seus nomes. Nenhuma razão há para que não os prendam.

— Oh! Jaime! — gritei com angústia. — Porque fizeste isso?

— É o que pergunto a mim próprio.

— Mas se os prendem — disse eu, passado um momento, agarrando-me assim à única esperança que me restava — nada há de irreparável. Eles nunca saberão que foste tu…

— Não — interrompeu-me. — Mas eu saberei… saberei sempre… saberei que não mais serei como era, que sou outra personagem, à qual no momento em que falava dera a vida como a mãe dá ao filho deitando-o ao mundo. E, infelizmente, esta personagem não me agrada… aí é que está a desgraça… Há maridos que matam as mulheres porque lhes é intolerável continuarem a viver juntos. Imagina o que é ter dois seres no mesmo corpo quando há um que odeia o outro até à morte. Quanto aos meus amigos, vão com certeza prendê-los.

Não pude conter-me por mais tempo e disse-lhe: