— Mesmo que não tivesses falado, terias sido posto em liberdade. E os teus amigos não correm qualquer perigo.
Contei por alto e rapidamente a história das minhas relações com Astárito, a minha intervenção a seu favor e a promessa que Astárito me havia feito. Ouviu-me sem dizer palavra, depois declarou:
— Sim, senhor! Com que então devo a minha liberdade não só à minha actividade de espião, mas ainda às tuas relações amorosas com um polícia.
— Jaime! Não fales assim!
— De resto — continuou, passado um momento —, estou contente que os meus amigos se consigam livrar; pelo menos não terei esses remorsos na consciência.
— Vês? — disse-lhe vivamente. — Que diferença há entre ti e os teus amigos? Eles também devem a sua liberdade, assim como tu, a mim e ao facto de Astárito estar apaixonado.
— Perdão, aí há uma diferença! Eles não falaram.
— Quem to disse?
— Espero bem que não o tenham feito, fossem eles o que fossem: de resto isso não seria uma consolação para mim.
— Mas tu não tens mais que passar a comportar-te como se nada se tivesse passado! — insisti de novo. — Volta para o pé deles sem fazer nenhuma alusão ao assunto… Que pode acontecer? Acontece a toda a gente ter um momento de fraqueza.
— Sim — respondeu-me —, mas não acontece a toda a gente morrer e continuar vivo. Sabes o que me aconteceu no momento em que falei? Morri… estou morto… simplesmente morto… para sempre.
Incapaz de suportar por mais tempo a angústia que me apertava o coração desfiz-me em lágrimas.
— Mas porque estás a chorar? — perguntou-me.
— Por causa das coisas que dizes — respondi soluçando —, que estás morto. Isso assusta-me tanto!
— Desagrada-te estar ao lado de um morto? — perguntou-me brincando. — No entanto não é tão horrível como parece… Não é mesmo nada horrível… Estou morto mas de uma maneira particular… no que diz respeito ao corpo, estou bem vivo… apalpa aqui e vê lá se não estou vivo.
Agarrou-me a mão e fez-me tocar-lhe no corpo.
— Estou bem vivo como tu sentes…
Puxava-me a mão para obrigar-me a apalpá-lo.
— Estou portanto vivo… por aquilo que te diz respeito, como acabas de verificar, estou mais vivo do que nunca… não tenhas medo; se nós, enquanto eu estava vivo, não nos amamos muitas vezes, em compensação vamos fazê-lo agora, que estou morto, com muito mais frequência.
Com uma espécie de desprezo raivoso tirou de cima dele a minha mão inerte. Levei as duas ao rosto e dei largo curso à minha miserável dor. Desejaria ter chorado sempre, não parar de chorar, porque temia o momento em que o pranto cessa e se fica vazio e como que apatetado diante das coisas que o faziam sofrer. No entanto, esse momento chegou; limpei ao lençol a minha cara inundada e fixei os olhos dilatados no vácuo. Então ouvi que ele me perguntava numa voz afectuosa e doce:
— Vejamos, na tua opinião que devia eu fazer?
Voltei-me para ele com violência, apertei-me contra o seu peito e disse-lhe:
— Não pensar mais nisso… o que aconteceu, aconteceu… não te preocupes… é o que deves fazer!
— E depois?
— Depois, retoma o trabalho… faz o teu doutoramento… depois volta para a tua terra… pouco me importa se não te tornar a ver desde que te saiba feliz… arranja um emprego! Quando chegar o momento, casa com uma rapariga da tua região, da tua situação social, que te ame sinceramente… A política para que te serve? Tu não foste feito para a política… fizeste mal em te meter nela… foi um erro; acontece a toda a gente cometer erros… Um dia há-de parecer-te estranho como chegaste a interessar-te por essas coisas. Eu amo-te sem egoísmo. Jaime. Outra mulher não quereria separar-se de ti… Pois bem!… se for preciso parte amanhã… não nos veremos mais, contanto que sejas feliz!
— Mas eu — disse ele em voz baixa e clara —, nunca mais serei feliz; sou um delator.
— Não é verdade! — respondi, exasperada. — Não és um delator! E mesmo que o tivesses sido podias ainda ser feliz. Há pessoas que cometeram verdadeiros crimes, e no entanto são felizes. Eu, por exemplo. Quando se diz uma mulher da rua, sabe Deus o que se imagina: ora eu sou uma rapariga como as outras. Muitas vezes sou até feliz. Nestes últimos dias — acrescentei com amargura — era tão feliz!
— Eras feliz?
— Sim, completamente! Mas sabia bem que não podia durar muito, e naturalmente…
Ao dizer isto tive outra vez vontade de chorar, mas contive-me.
— Tu julgavas ser muito diferente do que és… E o que aconteceu, aconteceu. Agora aceita ser como és realmente… e verás como tudo se arranjará depressa. No fundo sofres pelo sucedido porque tens vergonha e receias o julgamento dos outros, dos teus amigos… Pronto! Deixa de andar com eles, procura outras pessoas, o mundo é tão grande… Se eles não te querem o suficiente para compreenderem que isto não foi mais que um momento de fraqueza, fica comigo, eu amo-te, compreendo-te e não te julgo… Asseguro-te — gritei com força —, quanto pior fosse a acção que tivesses cometido mais serias para sempre o meu Jaime!
Nada replicou e eu continuei:
— Não sou mais que uma pobre rapariga ignorante, eu sei, mas há coisas que compreendo melhor do que tu. Eu também já passei pelo que tu sentes neste momento. A primeira vez que nos vimos, e em que tu nem sequer me tocaste, meteu-se-me na cabeça que era porque me desprezavas e de repente perdi até mesmo o gosto de viver. Sentia-me tão desgraçada! Gostaria de ser outra e ao mesmo tempo compreendia ser impossível e que continuaria sempre a ser o que era; tinha uma vergonha que me queimava, um aborrecimento, um desespero… sentia-me gelada. paralisada… por instantes desejei morrer. Depois, um dia, saí com minha mãe e entrei por acaso numa igreja, e ali, rezando. compreendi que no fundo nada havia de que corar… que se eu era feita desta maneira era porque Deus o tinha querido, que não me devia revoltar contra a minha sorte, mas, pelo contrário, aceitá-la com docilidade e confiança, e que se me desprezavas era por defeito teu e não meu… Em suma, pensei muitas coisas, e por fim passou-me toda a mortificação e senti-me de novo alegre.
Começou a rir, com aquele riso que me gelava, e disse:
— Em resumo, devia aceitar o que fiz e não me revoltar. Devia aceitar aquilo em que me tornei e não me julgar. Talvez que na igreja se possam passar essas coisas, mas fora da igreja…
— Pois bem! Vai à igreja! — propus-lhe, agarrando-me a esta nova esperança.
— Não, não irei. Não sou crente e a igreja aborrece-me. E depois…
Recomeçou a rir, depois, de repente, pôs-se sério, agarrou-me pelos ombros e começou a sacudir-me com violência, gritando:
— Mas tu não compreendes a minha acção? Não compreendes? Não compreendes?
Abanava-me com tal força que me cortava a respiração. Com uma última sacudidela atirou-me para trás e senti-o saltar da cama e começar a vestir-se às escuras.
— Não acendas a luz! — disse-me com ar ameaçador. — É preciso que eu me habitue a que me olhem outra vez de frente… por agora é ainda cedo. Ai de ti se a acendes!
Nem ousava respirar, mas acabei por perguntar:
— Vais-te embora?
— Sim, mas voltarei — disse-me.
Pareceu-me que ria de novo:
— Não tenhas medo, que voltarei… Devo mesmo dar-te uma boa notícia: tenciono viver contigo definitivamente.
— Aqui, em minha casa?
— Sim, mas não te incomodarei… terás a liberdade necessária para continuares com a tua vida habitual. De resto — acrescentou — poderemos viver os dois com o que me manda a minha família… dava para pagar a pensão… mas aqui em casa chega bem para os dois.