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Comemos em silêncio o primeiro prato. Depois minha mãe, de pé, disse não sei o quê sobre o preço da carne e então Jaime levantou a cabeça e respondeu-lhe:

— Não tenha medo, minha senhora. De ora em diante serei eu quem pensará em tudo; vou ter um bom emprego.

A esta notícia senti um pouco de esperança.

— Que lugar? — perguntou a minha mãe.

— Um lugar na polícia — respondeu-lhe Jaime, com uma gravidade contrita —, foi um amigo da Adriana quem mo propôs… o Sr. Astárito.

Pousei o garfo e a faca e olhei-o intensamente.

— Descobriu-se — continuou — que eu possuía excelentes qualidades para fazer parte da organização.

— É possível — respondeu minha mãe —, mas eu nunca gostei de polícias… O filho da lavadeira que mora cá em cima também se fez policia. Sabe o que disseram os rapazes que trabalham no depósito de cimento, aqui ao lado? “Podes pôr-te ao largo porque já não te conhecemos!” Além disso, eles ganham mal.

Fez uma careta, mudou-lhe o prato e apresentou-lhe a carne.

— Mas não se trata disso — replicou Jaime servindo-se. — Trata-se de um lugar importante, delicado, secreto… Que diabo! Eu para alguma coisa andei a estudar! Estou quase doutorado, falo várias línguas. Só os pobres-diabos se tornam agentes, não pessoas como eu.

— É possível — repetiu minha mãe. — Toma! — acrescentou pondo no meu prato o bocado maior da carne.

— Não é possível — disse Jaime — é certo!

Calou-se por um instante, depois repetiu:

— O governo sabe que há mal-intencionados por toda a parte… Não só nas classes pobres, mas também nas ricas… Para vigiar os ricos são precisas pessoas bem educadas, que falem como eles, se vistam como eles, tenham os mesmos modos… que lhes inspirem confiança, em suma… É o que farei… frequentarei os hotéis de primeira categoria, viajarei no wagon-lit, comerei nos melhores restaurantes, vestirei dos melhores alfaiates, frequentarei as praias de luxo, os desportos de Inverno mais famosos… Que diabo! Por quem me tomam vocês?

Minha mãe agora olhava-o pasmada. Todos estes esplendores a maravilharam.

— Nesse caso — declarou — já nada mais tenho a dizer.

E eu, tendo acabado de comer, de repente tornara-se-me impossível continuar a assistir a esta lúgubre troca de palavras.

— Estou cansada — disse bruscamente. — Vou para o meu quarto.

Levantei-me e saí da sala. Uma vez no quarto, sentei-me na cama, e toda enrolada comecei a chorar em silêncio com o rosto entre as mãos. Pensava no desgosto de Jaime e na criança que ia nascer e tinha a impressão de que as duas coisas, a mágoa e a criança, aumentavam por uma força estranha que não dependia de mim e que eu não podia dominar; elas estavam vivas, nada havia a fazer. Passado um momento ele entrou; levantei-me e errei um pouco pelo quarto para que ele não visse os meus olhos com lágrimas e dar tempo a secá-los. Acendeu um cigarro, atirou-se para cima da cama e ficou deitado de costas. Sentei-me ao seu lado e pedi-lhe:

— Suplico-te, Jaime… não fales assim à minha mãe.

— Porque?

— Porque ela não compreende; eu, pelo contrário, compreendo e cada uma das tuas palavras é como uma agulha que me enterrassem no coração.

Não respondeu e continuou a fumar em silêncio. Tirei da gaveta uma das minhas camisas, agulha e linha, sentei-me na cama ao lado da lâmpada e, calada, comecei a coser. Não queria falar porque tinha medo de que ele voltasse ao mesmo assunto; esperava, pelo contrário, que se guardássemos silêncio ele acabaria por desanuviar o espírito e pensar noutra coisa. A costura requer muita atenção visual, mas deixa o espírito livre; as mulheres batidas nesse trabalho sabem-no bem. Enquanto cosia, os pensamentos fervilhavam e giravam-me na cabeça, ou, melhor, assim como o fio passava e repassava através do tecido, assim eles pareciam coser no meu espírito não sei que bainha ou rasgão. Também eu tinha agora a mesma obsessão e não conseguia deixar de pensar no que ele dissera a Astárito e nas consequências que se seguiriam. Mas queria libertar o espírito destes pensamentos, até porque receava que alguma misteriosa influência o poderia obrigar a pensar a ele também, levando-o a aumentar a sua dor. Queria, pois, pensar nalguma coisa clara, alegre e leve, e com todas as forças da minha alma concentrava toda a minha imaginação sobre o filho que iria nascer; era, com efeito, o único aspecto alegre da minha vida entre tantas coisas terrivelmente tristes. Imaginava-o tal como seria quando tivesse dois ou três anos, a melhor idade, em que as crianças são sempre mais bonitas e mais engraçadas; e, cogitando em tudo o que ele faria e diria e na maneira como o criaria, senti voltar-me a alegria, como esperava; esqueci por momentos Jaime e a sua mágoa. Acabara de coser a camisa; peguei noutra peça de roupa para passajar, e lembrei-me de que poderia aliviar a tensão das longas horas que passaria com Jaime fazendo o enxovalinho do meu filho. Somente, seria preciso fazê-lo às escondidas ou arranjar um pretexto. Diria a Jaime que o destinava a uma das nossas vizinhas que também, por acaso, com efeito esperava um bebé; a ideia pareceu-me óptima, até porque já falara nesta mulher a Jaime e aludira à sua pobreza. Estes pensamentos distraíram-me de tal maneira que comecei, quase sem dar por isso, a cantar em voz baixa. Tenho a voz fraca, mas afinada, com uma grande doçura de timbre, que se nota mesmo quando falo. Comecei uma canção muito em voga naquele tempo que se chamava Cidade Triste. Como levantasse os olhos para partir a linha com os dentes, vi que Jaime me olhava. Então, pensando que me poderia censurar por cantar num momento tão grave, calei-me:

Olhou-me e disse:

— Continua a cantar.

— Gostas que eu cante?

— Sim.

— Mas não canto bem.

— Não faz mal.

Recomecei a coser e a cantar para ele. Como todas as raparigas, eu sabia um grande número de canções; tinha boa memória e lembrava-me do que aprendera em criança. Cantei-lhe um pouco de tudo. A uma canção seguia-se outra. Comecei por cantar em surdina, mas depois tomei-lhe o gosto e cantei em voz alta com o maior sentimento que podia. As cantigas sucediam-se; enquanto cantava uma pensava já noutra. Ele ouviu-me com uma certa seriedade no rosto e eu sentia-me feliz por poder distrair o seu espírito. Mas ao mesmo tempo pensava que quando era pequena tinha perdido não sei que brinquedo de que gostava muito; como não deixasse de chorar a sua perda, minha mãe, para me consolar, sentara-se na minha cama e começara a cantar as três únicas canções que sabia. Cantava mal, tinha voz de falsete, mas apesar de tudo acabara por me distrair: ouvia-a exactamente como Jaime me ouvia agora. Passado um momento. a ideia do brinquedo perdido começou a infiltrar-se como gotas de amargura no breve esquecimento que minha mãe me oferecera e acabou por apagá-lo totalmente e torná-lo, por contraste, insuportável, tanto assim que eu tinha recomeçado a chorar e que minha mãe, impaciente, me tinha apagado a luz deixando-me a chorar às escuras. Tinha a certeza de que apenas tivesse passado a apaziguadora doçura do meu canto, era impossível que ele não voltasse a sentir a sua mágoa, mais forte e mais aguda ainda, pelo contraste do superficial sentimentalismo das minhas canções. Não me enganava. Havia quase uma hora que eu cantava quando de repente me interrompeu: