— Se te tortura que se tenha escrito tudo o que disseste a Astárito… ele fará por mim seja o que for. Tenho a certeza de que se lho pedir ele fará desaparecer o interrogatório.
Olhou-me e perguntou-me em tom singular:
— Que te faz pensar isso?
— Tu mesmo o declaraste no outro dia… Quando te disse que devias tentar esquecer tu respondeste-me: “Mesmo que eu o esquecesse, a polícia lembrar-se-á”.
— E como lhe pedirás?
— É muito simples. Telefono-lhe e vou ao Ministério.
Não disse nem sim nem não. Insisti:
— Então queres que lhe vá pedir?
— Por mim, faz como entenderes.
Saímos juntos para irmos telefonar à leitaria. Encontrei logo Astárito e disse-lhe que precisava de falar com ele. Perguntei-lhe se podia ir ao Ministério. Mas ele, gaguejando, respondeu-me de uma maneira estranha:
— Ou em tua casa, ou então não.
Compreendi que queria pagar-se do favor que eu lhe podia e procurei disfarçar:
— Num café? — perguntei.
— Ou em tua casa, ou então não.
— Está bem! — disse. — Então vem a minha casa!
E acrescentei que o esperava nesse mesmo dia ao fim da tarde.
— Sei o que ele quer — disse a Jaime quando voltávamos. — Mas ninguém pode obrigar uma mulher a fazer isso contra vontade. Chantagens… fez-mas enquanto eu era ainda uma inexperiente, mas agora não mas fará mais!
— Mas porque não queres? — perguntou-me Jaime negligentemente.
— Porque é a ti a quem amo.
— É muito possível — disse no mesmo tom indiferente que se tu não quiseres aceder aos seus desejos ele se recuse a destruir o interrogatório… E então?
— Há-de destruí-lo, não tenhas receio.
— Mas se não o fizer senão com essa condição?
Estávamos já na escada. Parei e declarei-lhe:
— Farei o que tu quiseres.
Segurou-me pela cintura e disse-me lentamente:
— Pois bem! Ouve o que quero. Que faças com que Astárito venho cá e que o leves para o teu quarto com o pretexto de ires para a cama com ele… Eu estarei à espreita atrás da porta e quando ele entrar matá-lo-ei com um tiro de revólver. A seguir empurramo-lo para debaixo da cama e nós é que nos amaremos toda a noite!
Livres pela primeira vez da névoa que os embaciara durante os dias antecedentes, os seus olhos brilhavam agora. Assustei-me, sobretudo porque sentia que havia uma lógica nesta proposta e também porque daqui em diante só esperava desgraças cada vez maiores e definitivas e este crime tinha todo o ar de se poder executar.
— Tem pena de mim, Jaime! — gritei. — Não digas isso nem a brincar!
— Nem a brincar! — repetiu. — Com efeito estava a brincar!
Eu admitia que talvez até mesmo não brincasse. Mas o que me tranquilizou um pouco era a ideia de que o revólver de que se serviria estava vazio, porque eu às escondidas lhe tirara as balas.
— Está descansado — disse-lhe. — Astárito fará tudo o que eu quiser. Mas não fales mais dessa maneira, que me assustas!
— Então agora já não tenho o direito de brincar? — disse num tom ligeiro penetrando em casa.
Desde que chegamos à sala grande notei que fora tomado de uma brusca excitação. Começou a passear de um lado para o outro, com as mãos nos bolsos, segundo o seu hábito, mas com uma atitude diferente, mais enérgica, com uma expressão que parecia denotar uma profunda e lúcida reflexão e não a sua costumada apatia. Atribui esta mudança ao alívio que sentia ao saber que esses documentos bem depressa seriam destruídos; mais uma vez abri o coração à esperança e disse-lhe:
— Verás que tudo se arranjará!
Olhou-me como se não me conhecesse e repetiu num tom mecânico:
— Sim, com certeza… tudo se há-de arranjar!
Tinha mandado minha mãe fazer compras para o jantar. Tive de repente uma onda de optimismo. Pensava que de facto tudo se arranjaria talvez até melhor do que se esperava. Astárito anuiria ao meu pedido, se não o tinha feito já; e em cada dia que passasse Jaime veria diminuir o seu remorso, retomaria o gosto pela vida, tornaria a olhar o futuro com confiança. Os homens têm este traço comum; na infelicidade contentam-se em sobreviver; mas logo que a sorte parece querer mudar, acalentam os planos mais vastos e mais ambiciosos. Dois dias antes sentia-me capaz de renunciar a Jaime se isso fosse necessário para que ele fosse feliz; agora, que confiava na possibilidade de lhe poder oferecer rapidamente esta felicidade, não só já não pensava em deixá-lo, mas estudava até a maneira de o prender. O que me levava a fazer estes planos não eram cálculos inteligentes, mas um impulso obscuro da minha alma, que espera sempre e não suporta por muito tempo a mortificação e a dor. Tive a impressão de que no ponto em que estavam as coisas não havia para nós mais do que duas soluções: ou nos separaríamos ou nos uníamos para toda a vida. Como não queria nem a sonhar a primeira solução, perguntava a mim própria se não haveria um meio de conseguir a segunda.
Não gosto da mentira; posso contar no número das minhas raras qualidades uma franqueza quase excessiva. Se naquele momento eu mentia a Jaime era porque não tinha a impressão de mentir, mas de dizer a verdade. Uma verdade mais verdadeira do que a própria verdade; uma verdade segundo a alma e não baseada em factos materiais. De resto em nada pensei; foi como que uma inspiração.
Continuava a andar de um lado para o outro; estava sentada ao pé da mesa. Chamei-o subitamente!
— Ouve, pára um momento… tenho uma coisa para te dizer.
— O quê?
— Havia já um tempo que não me sentia bem; um destes dias fui ao médico… Estou grávida.
Parou, olhou-me e repetiu:
— Estás grávida?
— Estou. E tenho a certeza de que é de ti.
Ele era inteligente. Não podia adivinhar que eu mentia, como compreendeu de repente e perfeitamente a verdadeira razão desta notícia. Pegou numa cadeira, sentou-se ao pé de mim, fez-me uma festa afectuosa na cara e disse-me:
— Suponho que esta devia ser mais uma razão… ou, melhor, a razão principal… para me fazer esquecer tudo o que se passou… não é?
— Que queres dizer? — perguntei-lhe fingindo não perceber.
— Vou tornar-me “pai de família”. — continuou. — O que não queria fazer por ti vou ter de o fazer por amor desse pequenino, como vocês dizem, as mulheres.
— Farás o que quiseres — disse-lhe, encolhendo os ombros, fingindo indiferença. — Digo-te isto porque é verdade, mais nada.
— Um filho — continuou no seu tom meditativo, como se pensasse em voz alta —, pode ser uma razão para viver… Um filho é um bom pretexto. Pode até chegar-se a roubar e a matar pelo próprio filho!