— Bem depressa a tua barriga inchará… inchará cada dia mais… um dia a dor obrigar-te-á a abrir essas pernas que tu fechas tão ciosamente e a cabeça da criança, já coberta de cabelos, sairá, tu a empurrarás para a luz, agarrá-la-ão e depois irão pô-la nos teus braços… ficarás contente e haverá mais um novo ser neste mundo… Esperemos que ele não venha a falar vomo Astárito!
— Como?
— “Maldito seja o dia em que nasci!”
— Astárito é um desgraçado — respondi —, mas eu tenho a convicção plena de que o meu filho terá sorte e será feliz.
Depois enrolei-me na roupa e julgo que dormi. Mas o nome de Astárito tinha reavivado o sentimento de angústia que eu já sentira depois de o ver partir. De repente ouvi uma voz que eu não conhecia gritar-me com força aos ouvidos: “Pan! Pan!”, como quando se quer imitar dois tiros de revólver; e sem sair da cama dei um salto com um movimento de susto e de angústia. A lâmpada estava ainda acesa; desci da cama e fui à porta para me certificar de que estava bem fechada. Mas vi Jaime, que fumava, de pé, ao pé da porta. Confusa, voltei para a cama, sentei-me dentro da roupa e perguntei:
— Que diz que irá fazer o Sonzogne?
Olhou-me e respondeu:
— Como poderei saber?
— Eu conheço-o — disse eu exprimindo por fim, por palavras, a angústia que me oprimia. — Não quer dizer o ter consentido que o pusessem fora da sala sem protestar. É capaz de o matar. Que julgas tu?
— É muito possível.
— Pensas que o vai matar?
— Se o fizesse não me admiraria.
— E preciso avisá-lo! — gritei levantando-me e vestindo-me. — Tenho a certeza de que o vai matar! Ah! Mas porque não pensei nisto mais cedo?
Vestia-me a pressa falando sempre do meu receio, do meu pressentimento. Jaime, calado, fumava. Disse-lhe:
— Vou a casa de Astárito… A esta hora está em casa… Espera-me aqui.
— Vou contigo.
Não insisti. No fundo agradava-me que me acompanhasse, porque estava tão agitada que receava sentir-me mal. Enfiei o casaco e declarei:
— É preciso apanhar um táxi.
Jaime vestiu o sobretudo e saímos.
Na rua comecei a andar rapidamente, quase a correr, enquanto Jaime, sem me largar o braço, me seguia. Encontramos logo um táxi; gritei a direcção de Astárito. Era uma rua no bairro Prati; nunca lá tinha ido, mas sabia que não era longe do Palácio da Justiça. O táxi arrancou. Fora de mim, segui o percurso curvando-me, para observar as ruas, sobre o ombro do chauffeur. A certa altura ouvi Jaime rir baixinho, e, como se falasse consigo, pronunciar:
— E depois! Uma serpente engoliu outra serpente.
Não lhe prestei atenção. Quando chegávamos em frente do Palácio da Justiça mandei parar e Jaime pagou. Atravessámos as ruas por entre alas de saibro, entre os bancos e as árvores. A rua de Astárito surgiu na minha frente como uma espada: longa e direita, iluminada a todo o comprimento por uma longa fila de candeeiros brancos. Era uma rua ladeada de edifícios regulares e maciços, sem lojas, e que parecia deserta. Astárito morava no fim da rua. Reinava uma tal tranquilidade que eu declarei:
— É possível que eu não tenha feito outra coisa que imaginar tudo isto… Fosse como fosse era meu dever vir.
Passamos três ou quatro prédios e várias ruas transversais. Então Jaime disse-me com uma voz tranquila:
— Deve ter acontecido alguma coisa… olha.
Levantei os olhos e a pouca distância vi um ajuntamento em frente de uma porta. Um cordão de gente alinhava-se no passeio fronteiro; olhavam para cima, na direcção do céu sombrio. Senti logo a certeza de que estavam em frente da porta de Astárito. Comecei a correr; tive a impressão de que Jaime corria também.
— Que há aqui? O que aconteceu? — perguntei, sem fôlego. aos primeiros que estavam no grupo que se comprimia diante da porta de Astárito.
— Não se percebe bem — respondeu aquele a quem me dirigi, um homem louro, sem casaco, sem chapéu, que segurava a bicicleta pelo guiador —, foi alguém que se atirou para a caixa da escada… ou atiraram-no. A polícia subiu ao telhado para investigar o caso.
Abri caminho por entre a multidão, e à força de cotoveladas penetrei no hall da casa, que era espaçoso, bem iluminado e estava cheio de gente. Uma escada branca com corrimão de ferro forjado subia formando uma larga curva por cima de todas essas cabeças. Quando consegui chegar à frente, vi por entre todos aqueles ombros uma parte do patamar inferior da escada. Um pilar redondo de mármore branco suportava uma estátua de bronze dourado, alada e nua, com um braço levantado segurando um facho que continha uma lâmpada. Mesmo debaixo do pilar estava um corpo humano coberto com um lençol. Toda a gente olhava para o mesmo lado; olhei também e vi um pé calçado de preto que saía do lençol. No mesmo instante uma voz começou a gritar imperiosamente.
— Para trás! Vão-se embora!
Senti-me projectada com violência para a rua, juntamente com os outros. Os altos batentes da porta fecharam-se logo em seguida. Disse com voz apagada a quem estava atrás de mim:
— Jaime, vamos!
Vi então uma pessoa desconhecida que, admirada, me olhava. Depois de terem em vão protestado em voz alta e batido com os punhos na porta fechada, as pessoas dispersaram-se pelas ruas fazendo comentários: Outras chegavam de todos os lados correndo. Dois automóveis e um bom número de bicicletas pararam para se informarem. Comecei a girar por entre esta multidão com ansiedade cruciante e a olhar todas estas caras sem ousar falar. Certas nucas, certos ombros, pareciam-me os de Jaime; enfiava-me impetuosamente pelo meio de grupos e via um grande número de pessoas que me olhava com surpresa. Havia muita gente em frente da porta; eles sabiam que ela escondia um cadáver e tinham esperança de o poder ver. Lá estavam, apertados, com uma expressão paciente e grave, como as bichas à porta dos teatros.
Continuava a errar ainda quando me apercebi que já tinha examinado toda a gente e que tornava a ver sempre as mesmas pessoas. Pareceu-me ouvir, num destes grupos, o nome de Astárito e notei que não me preocupava com ele, mas que toda a minha angústia se concentrava em Jaime. Acabei por me convencer de que já lá não estava. Devia ter-se afastado no momento em que penetrei no hall. Pareceu-me, não sei porquê, que deveria ter esperado esta fuga; admirava-me de não ter pensado nisto mais cedo. Apelando para todas as minhas forças, arrastei-me até praça, subi para um táxi e dei a direcção da minha casa. Pensava que Jaime me podia ter perdido de vista e ter voltado para casa. Mas tinha quase a certeza de que nada disso acontecera.
Não estava em casa e não voltou nem nessa noite nem no dia seguinte. Fiquei fechada no quarto, presa de um mal-estar tão angustiante que não podia deixar de tremer da cabeça aos pés. Mas não tinha febre. Parecia-me apenas que vivia fora de mim própria, num mundo anormal, excessivo, onde todo o espectáculo, todo o ruído, todo o contacto me feriam e me produziam desfalecimentos de coração. Nada me podia impedir de pensar em Jaime, nem mesmo a descrição em pormenor do novo crime de Sonzogne, que os jornais que minha mãe tinha comprado traziam em grandes letras. O crime tinha a assinatura de Sonzogne; parecia que os dois homens tinham lutado por momentos sobre o patamar em frente da porta de Astárito, depois Sonzogne tinha-o empurrado contra o corrimão, levantara-o e atirara-o pela caixa da escada. Esta crueldade era extraordinariamente expressiva; mais ninguém a não ser Sonzogne poderia matar um homem desta maneira. Mas, como já disse, tinha uma única ideia e nem mesmo cheguei a interessar-me pelos artigos que contavam como mais tarde, durante a noite. Sonzogne fora morto a tiro enquanto fugia pelos telhados como um gato. Experimentava uma espécie de náusea por tudo o que não dissesse respeito a Jaime, e ao mesmo tempo pensar nele enchia-me de uma angústia insuportável. Por duas ou três vezes recordei Astárito; lembrava-me do seu amor por mim e da sua melancolia com um sentimento de piedade tão forte como impotente; se não sentisse esta angústia por causa de Jaime teria com certeza chorado e rezado por esta alma, que nenhuma luz tinha alegrado e que fora separada do corpo de uma forma tão prematura e tão desumana. Foi assim que passei este primeiro dia, a noite, o dia seguinte e a outra noite. Estendida na cama ou sentada numa cadeira, apertava com força entre as mãos um casaco de Jaime, que encontrara pendurado no bengaleiro, e beijava-o de vez em quando com paixão, ou mordia-o para refrear a minha grande inquietação. Mesmo quando minha mãe me obrigava a tomar algum alimento, comia com uma das mãos e com a outra apertava convulsivamente o casaco. A segunda noite minha mãe quis deitar-me; deixei-me despir sem oferecer resistência. Mas quando tentou tirar-me o casaco, dei um grito de tal maneira aflitivo que minha mãe se assustou. Ela nada sabia, mas compreendeu vagamente que me desesperava com a ausência de Jaime.