Sor Desmond assentiu, claramente contente por se livrar daquela desagradável tarefa, mas Utherydes Wayn ficou ainda por um momento, de olhos tristes, depois de o castelão ter se retirado.
– O que fez foi grave, senhora, mas não serviu de nada. Sor Desmond enviou Sor Robin Ryger atrás deles, para trazer de volta o Regicida... ou, caso não seja possível, a cabeça dele.
Catelyn não esperara outra coisa. Que o Guerreiro dê força ao seu braço da espada, Brienne, rezou. Tinha feito tudo o que podia; nada restava a não ser ter esperança.
Suas coisas foram levadas para o quarto do pai, dominado pela grande cama de dossel em que Catelyn havia nascido, com as colunas esculpidas em forma de trutas saltantes. O pai tinha sido mudado para meia volta de escada abaixo, e sua cama de doente, colocada de frente para a varanda triangular de onde podia ver os rios que sempre tanto amara.
Lorde Hoster dormia quando Catelyn entrou. Ela saiu para a varanda e apoiou uma mão na áspera balaustrada de pedra. Para lá do ponto onde se erguia o castelo, o rápido Pedregoso juntava-se ao plácido Ramo Vermelho, e via-se um longo trecho de rio para jusante. Se uma vela listrada chegar do leste, será Sor Robin retornando. Por ora, a superfície das águas encontrava-se vazia. Agradeceu aos deuses por isso e voltou para dentro, para se sentar com o pai.
Catelyn não poderia dizer se Lorde Hoster sabia que ela se encontrava ali, ou se sua presença lhe trazia algum conforto, mas sentia-se consolada por estar com ele. O que diria se soubesse de meu crime, pai?, interrogou-se. Teria feito o que eu fiz se fosse Lysa e eu que estivéssemos nas mãos de nossos inimigos? Ou também me condenaria, chamando o ato de loucura de mãe?
Havia um cheiro de morte no quarto; um cheiro pesado, doce e desagradável, que se agarrava às coisas. Fazia-a lembrar dos filhos que tinha perdido, de seu querido Bran e do pequeno Rickon, mortos pelas mãos de Theon Greyjoy, que fora protegido de Ned. Ainda sofria por Ned, sofreria sempre por ele, mas ter roubados também os seus bebês...
– Perder um filho é uma crueldade monstruosa – sussurrou suavemente, mais para si do que para o pai.
Os olhos de Lorde Hoster abriram-se.
– Tanásia – rouquejou, numa voz espessa de dor.
Ele não me reconhece. Catelyn já tinha se acostumado com o pai a confundindo com a mãe ou a irmã Lysa, mas Tanásia era um nome estranho a ela.
– É a Catelyn – disse. – É a Cat, pai.
– Perdoe-me... o sangue... oh, por favor... Tanásia...
Teria havido outra mulher na vida do pai? Talvez alguma donzela de aldeia que ele seduzira quando jovem? Será que ele achou conforto nos braços de alguma criada depois de a mãe morrer? Era um pensamento estranho, perturbador. De repente sentiu-se como se não conhecesse o pai de todo.
– Quem é Tanásia, senhor? Quer que a mande chamar, pai? Onde posso encontrar a mulher? Ainda é viva?
Lorde Hoster gemeu.
– Morta. – A mão dele procurou a sua, apalpando. – Terá outros... bebês amorosos, e legítimos.
Outros? pensou Catelyn. Terá esquecido que Ned está morto? Ainda está falando com Tanásia, ou agora fala comigo, com a Lysa ou com a mãe?
Quando ele tossiu, a expectoração veio ensanguentada. Agarrou os dedos dela.
– ... seja uma boa esposa e os deuses irão abençoá-la... filhos... filhos legítimos... aaahhh. – O súbito espasmo de dor fez com que a mão de Lorde Hoster se apertasse. As unhas enterraram-se na mão dela, e ele soltou um grito abafado.
Meistre Vyman chegou depressa, para preparar outra dose de leite de papoula e ajudar seu senhor a engoli-la. Pouco depois, Lorde Hoster Tully voltava a cair num sono pesado.
– Ele estava perguntando por uma mulher – disse Cat. – Tanásia.
– Tanásia? – o meistre olhou-a sem expressão.
– Não conhece ninguém com esse nome? Uma criada, uma mulher de alguma aldeia próxima? Talvez alguém de anos atrás? – Catelyn tinha passado muito tempo afastada de Correrrio.
– Não, senhora. Posso investigar, se quiser. Utherydes Wayn certamente saberá se uma pessoa assim alguma vez serviu em Correrrio. É Tanásia, você diz? O povo dá frequentemente o nome de ervas e flores às filhas. – O meistre parecia pensativo. – Houve uma viúva, ao que me lembro, que costumava vir ao castelo em busca de sapatos velhos que precisassem de solas novas. O nome dela era Tanásia, agora que penso nisso. Ou seria Pansy? Algo assim. Mas há muitos anos que não vem.
– O nome dela era Violet – disse Catelyn, que se lembrava muito bem da velha.
– Era? – o meistre fez uma expressão de desculpa. – Os meus perdões, Senhora Catelyn, mas não posso ficar. Sor Desmond decretou que só devemos falar com a senhora no âmbito de nossos deveres.
– Então deve fazer o que ele ordena. – Catelyn não podia culpar Sor Desmond; tinha lhe dado poucas razões para confiar nela, e o homem sem dúvida temia que ela pudesse usar a lealdade que muitos dos habitantes de Correrrio ainda nutriam pela filha de seu senhor para fazer mais algum estrago. Pelo menos estou livre da guerra, disse a si mesma, mesmo que por pouco tempo.
Depois que o meistre partiu, Catelyn vestiu um manto de lã e voltou a sair para a varanda. A luz do sol cintilava nos rios, dourando a superfície das águas que passavam rodopiando pelo castelo. Ela protegeu os olhos do clarão, em busca de uma vela distante, temendo vê-la. Mas nada havia, e esse nada queria dizer que suas esperanças ainda se mantinham vivas.
Passou o dia inteiro vigiando o rio, e também boa parte da noite, até suas pernas doerem de ficar em pé. Um corvo chegou ao castelo ao fim da tarde, descendo para a colônia com grandes asas negras. Asas escuras, palavras escuras, pensou, lembrando-se da última ave que chegara e do horror que trouxera.
– Falei com Utherydes Wayn, senhora. Ele está bastante seguro de que nenhuma mulher chamada Tanásia esteve em Correrrio desde que está aqui.
– Vi que chegou hoje um corvo. Jaime foi recapturado? – Ou morto, que os deuses não permitam isso!
– Não, senhora, não recebemos notícias do Regicida.
– Então é outra batalha? Edmure está em dificuldades? Ou Robb? Por favor, seja gentil, acalme os meus receios.
– Senhora, eu não devia... – Vyman olhou em volta, como que para se certificar de que não havia mais ninguém no quarto. – Lorde Tywin abandonou as terras fluviais. Tudo está sossegado nos vaus.
– De onde veio o corvo então?
– Do oeste – respondeu ele, atarefando-se com a roupa de cama de Lorde Hoster e evitando os olhos de Catelyn.
– Eram notícias de Robb?
Ele hesitou.
– Sim, senhora.
– Há algo errado. – Soube disso por seus modos. O homem estava escondendo algo. – Diga-me. É Robb? Ele está ferido? – Morto não, que os deuses sejam bons, por favor não me diga que ele está morto.
– Sua Graça foi ferido no assalto ao Despenhadeiro – disse Meistre Vyman, ainda evasivo –, mas escreve que não há por que se preocupar, e que espera retornar em breve.
– Um ferimento? Que tipo de ferimento? Com que gravidade?
– Não há por que se preocupar, ele escreveu.
– Todos os ferimentos me preocupam. Ele está sendo tratado?
– Estou certo de que sim. O meistre no Despenhadeiro cuidará dele, não tenho dúvidas.
– Onde foi ferido?
– Senhora, foi-me ordenado que não falasse com a senhora. Lamento. – Recolhendo suas poções, Vyman saiu apressadamente, e Catelyn foi novamente deixada a sós com o pai. O leite de papoula tinha cumprido a sua função, e Lorde Hoster encontrava-se mergulhado num sono pesado. Um fino fio de saliva escorria de um canto de sua boca aberta e umedecia a almofada. Catelyn pegou um quadrado de linho e limpou-o com suavidade. Quando o tocou, Lorde Hoster gemeu.